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Coluna Fragmentos: Escravidão branca?
A coluna ‘Fragmentos’, assinada pelo historiador Niltonci Batista Chaves, publicada entre 2007 e 2011, retorna como parte do projeto '200 Vezes PG', sendo publicada diariamente entre os dias 28 de fevereiro e 15 de setembro
João Gabriel Vieira | 06 de julho de 2023 - 03:49

A história do Brasil nos últimos 500 anos está diretamente relacionada às práticas rurais e as relações estabelecidas nesse universo. Pero Magalhães Gândavo, português que aqui viveu no período colonial – fase essencialmente rural de nossa história – registrou certa vez que a honra de uma pessoa no Brasil do século XVI era diretamente proporcional ao número de cativos sobre o qual ela tinha posse.
Segundo Gândavo o fato de alguém possuir meia dúzia de escravos já era garantia de “honrada” sobrevivência na medida em que esses cuidariam da produção das roças e da criação dos animais dos seus senhores. Tal visão atravessou séculos e consolidou no Brasil a ideia do trabalho agrícola e braçal como práticas inferiores, destinadas aos escravos.
Essa concepção começou a se modificar – em partes – nos meados do século XIX, com o aparecimento de um movimento abolicionista com a real inserção do Brasil nas práticas capitalistas e com a consequente desagregação do trabalho escravo e adoção do trabalho livre e assalariado.
Mas essa transição não foi pacífica. Como escreveu no século XIX o viajante francês Avé Lallemant, havia uma questão de mentalidade enraizada entre os escravocratas brasileiros: para um velho escravista era impensável pagar alguém pelo seu trabalho. De acordo com os relatos de Lallemant, para um senhor de escravos que naturalizou a relação de poder com seus cativos a partir da lógica da “sova e tronco”, por muito tempo pareceu intolerável pagar uma pessoa pela realização de qualquer trabalho.
Com relação as regiões ao sul do Brasil, entre as quais os Campos Gerais, durante muito tempo perdurou a tese de que por aqui a utilização do trabalho escravo foi secundária até mesmo em razão das atividades produtivas típicas da região, em especial a criação de rebanho bovinos e muares. Tal proposição ganhou força a partir da edição do clássico “As Metamorfoses do Escravo”, escrito pelo sociólogo paulista Octavio Ianni. Nesse livro, publicado em 1962, Ianni afirma que o uso do braço escravo foi secundário em praticamente todo sul brasileiro.
O fato é que, alguns estudos regionais realizados recentemente apontam no sentido contrário dessa concepção. Com base em documentos existentes em cartórios dos Campos Gerais, esses estudos indicam a presença de um contingente significativo de ex-escravos que, no início do século XX, estavam integrados a população local. Como esse foi um período de entrada de grandes levas de imigrantes europeus, é possível que a presença e a contribuição dos escravos negros na formação da chamada sociedade campeira tenha sido minimizada por alguns historiadores e sociólogos que se dedicaram ao estudo desse tema.
Com uma formação populacional mesclada, Ponta Grossa possui evidentes traços da presença e da contribuição negra na formação de sua gente. Por exemplo: a Igreja do Rosário, hoje um dos mais ricos patrimônios arquitetônicos e culturais ponta-grossense, foi construída para atender a população negra princesina; o Clube 13 de Maio, outro patrimônio de valor inestimável, também materializa a presença desse grupo em nossa cidade.
Apesar dos avanços tecnológicos, da suposta superação da mentalidade escravocrata, das discussões a respeito dos direitos humanos e das garantias constitucionais relativas a liberdade individual, o certo é que ainda nos dias atuais denúncias como as publicadas pelo JM no já distante ano de 1980 continuam a fazer parte dos noticiários brasileiros.
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O material original, com mais de 170 colunas, será republicado na íntegra e sem sofrer alterações. Por isso, buscando respeitar o teor histórico das publicações, o material apresentará elementos e discussões datadas por tratarem-se de produções com mais de uma década de lançamento. Além das republicações, mais de 20 colunas inéditas serão publicadas. Completando assim 200 publicações.
Publicada originalmente no dia 21 de março de 2010.
Coluna assinada por Niltonci Batista Chaves. Historiador. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná.