Debates
Só os motoristas são verdadeiramente livres
Da Redação | 07 de novembro de 2024 - 02:37
Por Giovani Marino Favero
No início de 2023 uma aura de incertezas pairava sobre nós, em especial pela chegada de um novo governo federal. Em março, precisei ir a Curitiba para uma reunião e decidi utilizar um carro da instituição qual trabalho. Fui acompanhado por um motorista recém-contratado, um profissional com uma longa trajetória de direção segura, com anos de experiência dirigindo ônibus. De postura atenciosa e com uma conversa agradável, ele logo mostrou ser daquelas pessoas que fazem a viagem parecer mais curta.
Durante todo trajeto o rádio ficou sintonizado em uma estação que transmitia notícias ininterruptas. Em dado momento, noticiaram um novo aumento nos preços dos combustíveis. Tentando puxar o assunto de forma leve, fiz uma brincadeira: “Sorte que o amor venceu”, referindo-me de maneira irônica ao cenário político daquele momento. Sem hesitar, ele respondeu: “É, mas o amor custa caro.” A resposta afiada e bem-humorada me pegou de surpresa e, confesso, fiquei admirado com a forma como ele lidava com a situação.
A conversa me levou a refletir sobre a serenidade daquele motorista. Enquanto muitos alardeavam indignação com o governo devido ao aumento nos combustíveis, ele parecia exibir uma indiferença estoica diante das flutuações de preços e do tumulto das mudanças políticas, uma calma que, ao longo de 2023, se mostrou quase profética; afinal, o preço dos combustíveis oscilou o ano todo, até que, em dezembro, finalmente baixou mais do que o esperado.
Essa postura me lembrou o conceito filosófico do estoicismo, fundado por Zenão de Cítio, na Grécia Antiga. Para os estoicos, as emoções não devem obscurecer o julgamento; a prática de dominar reações emocionais é central para a sabedoria e a paz de espírito. Na estrada, o motorista parecia imune ao alvoroço do mundo externo. Um verdadeiro exemplo de apatheia, aquela calma interior cultivada pelos estoicos.
De certo modo, muitos trabalhadores operacionais brasileiros, assim como ele, demonstram uma resistência emocional que nos remete ao ideal estoico. Eles seguem em frente, com uma calma inabalável, conduzindo suas vidas e suas tarefas sem se deixar afetar pelo turbilhão ao redor. Talvez, no fundo, eles sejam mesmo os únicos verdadeiramente livres.
Giovani Marino Favero é professor associado do Departamento de Biologia Geral da UEPG.