Debates
Estupro de vulnerável e os realities shows
Da Redação | 30 de setembro de 2021 - 00:56
Por Antonio Gonçalves
O final de semana foi conturbado, após cenas envolvendo o
cantor Nego do Borel e Dayane Mello, acerca da possibilidade de estupro de
vulnerável. De início, as redes sociais – atual tribunal digital – se
pronunciaram com estranheza, afinal, dois adultos não podem praticar atos
libidinosos? Os flertes iniciados na festa não poderiam prosseguir? Se eles
estavam a fim, que mal haveria nisso? Estupro de vulnerável, imagine, pois
ambos são maiores e tem plena consciência de seus atos! Não há proibição alguma
ou qualquer censura acerca do livre arbítrio de uma pessoa sobre seu corpo ou
suas preferências, no entanto, o Código Penal brasileiro protege a vítima em
caso de vulnerabilidade. Desenvolvemos.
A fim de implementar maior proteção, especialmente às
mulheres, em 7 de agosto de 2009 o Código Penal sofreu ampla reforma pela
promulgação da Lei n° 12.015/09, no que tange os crimes sexuais, e sobre o tema
destacamos duas mudanças: primeira a alteração do conceito de estupro que
passou a ser compreendido como constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se
pratique outro ato libidinoso. Um avanço na legislação, pois até então, se
diferenciava inclusive na dosimetria da pena, estupro de ato libidinoso. Agora,
ambos perfazem o conceito de estupro.
A segunda modificação está contida no §1° do artigo 217-A
do Código Penal:
Art. 217-A ter conjunção carnal ou praticar outro ato
libidinoso com menor de 14 anos:
Pena: reclusão de oito a quinze anos.
§1° - Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas
no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra
causa, não pode oferecer resistência.
No caso do reality show houve uma festa com bebida à vontade
e a participante bebeu além da conta e, ao estar totalmente embriagada, ficou
sem condições mínimas de discernimento a ponto de ter de ser carregada, pois
não conseguia andar sozinha e, ainda assim, bateu a cabeça no batente da porta.
Já na cama foi assediada pelo cantor e tal iniciativa
produziu preocupação em outros participantes que intervieram, após ouvirem
negativas da moça acerca dos avanços de Nego do Borel, tais como: “Para com
essa boca, para com essa boca”. Dentre eles temos Rico Melquiades que pediu para
Nego se afastar de Dayane por estar muito excitado e ela completamente
embriagada. Na sequência, outro participante, MC Gui questiona Dayane: “Day,
você está bem? Tem certeza que você quer ficar aí? Quer ir para a sua cama ou
ficar aí? As perguntas ficaram sem resposta.
No dia seguinte, a participante foi vista sem roupa e ao
sair da cama vestiu seu short, como atestou Dynho Alves. Por fim, a mesma disse
às colegas de confinamento que estava com marcas: “Eu não sei o que aconteceu,
tô com uma dor imensa, tem uns roxos aqui”. E prossegue: “De novo eu aprontei
nessa festa”.
A inserção do artigo 217-A no Código Penal teve
como condão proteger as vítimas de eventuais abusos sexuais em decorrência do
excesso de bebida alcoólica. Aqui há a necessidade de separação de cenários: em
um primeiro momento o contato e flerte estabelecido entre duas pessoas faz
parte das relações sociais e cabe essencialmente a eles decidirem se haverá
contato físico que pode ou não evoluir para atos libidinosos e até conjunção
carnal. Porém, aqui está o elemento essencial para a não autorização do segundo
cenário: se qualquer um dos envolvidos passar do limite alcoólico, a ponto de
não ter plena consciência na decisão de seus atos, o enlace não poderá
prosseguir.
O dispositivo tem por objetivo evitar possíveis
justificativas como as de Dayane: “aprontei de novo”. Ora, se não há condições
ébrias mínimas não há autorização para a realização de qualquer ato e, mesmo a
parte que estiver em condições mínimas de discernimento deverá refrear seus
anseios sob pena da prática de estupro. A lógica é evitar qualquer
justificativa indevida, como era frequente nos casos de violência contra a
mulher de que ela o havia deixado nervoso, que ele andava estressado e ela não
fora compreensiva etc.
O fato é: não há qualquer justificativa para consumar uma
conjunção carnal ou para a prática de atos libidinosos sem o duplo
consentimento das partes. No caso em tela o cantor pode e deve ser investigado
por possível estupro de vulnerável e a produção do programa deve autorizar o
exame de corpo de delito, inclusive para verificar se havia presença de sêmen.
As festas dos realities têm por objetivo descontrair os
participantes da tensão do confinamento e, também, incentivar a troca e o
contato entre eles a fim de tornar o ambiente ainda mais favorável. Mas, uma
coisa é relaxar outra bem diferente é não verificar excessos e desvios de
comportamentos.
É função da direção dessas modalidades de programas garantir
a integridade de seus participantes e, mais do que isso, evitar que desvios de
comportamentos os venha a serem expostos ou colocados em risco, como o caso em
tela. Não basta expulsar aquele que desviou sua conduta o correto é conversar
com os participantes para que eles não passem do seu limite alcoólico nas festas,
que não façam coisas inadequadas e, mais do que isso, que contem com o apoio,
tanto da direção como dos demais confinados, para eventual proteção em cacos de
excessos. Cada um está no programa com o objetivo de ganhar, porém, nada em
momento algum, justificará um crime ou uma prática danosa em decorrência de
abuso de bebida, o Código penal está aí e a vontade deve preponderar: não é
não! E Não acima do teor alcoólico é não mesmo!
Não cabe mais na realidade penal atual o adágio popular:
“quem nunca passou do limite e fez algo do qual se arrependeu?” No que depender
do Código Penal brasileiro e da proteção à vítima: ninguém.
* Antonio Gonçalves é advogado criminalista. Pós-doutor em
Desafios em la post modernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales
pela Universidade de Santiago de Compostela, Pós-Doutor em Ciência da Religião
pela PUC/SP, Pós-Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.
Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, MBA em Relações
Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Acredita em uma OAB/SP que
represente toda a classe sem distinções, primando pela transparência e que se
dedique de forma clara e objetiva na inclusão e capacitação dos profissionais
do estado de São Paulo.