Debates
Crise e segurança alimentar
Da Redação | 30 de maio de 2020 - 01:50

Luiz Alexandre Gonçalves Cunha
O problema da fome no Brasil na década de 1990 era muito grave, como reportagens da Folha de São Paulo realizadas no lixão de Olinda em 1994 deixavam evidenciados. As reportagens foram publicadas em 16/04/1994 e mostravam a situação de indigência de catadores de lixo que buscavam alimentos descartados nos lixões para alimentação. Essa situação se repetia nos milhares de lixões pelo Brasil, demonstrando a insegurança alimentar que atingia milhões de cidadãos brasileiros. O problema era tão sério que uma campanha de combate à fome, criada naquela década, provocou um grande impacto na opinião pública, transformando o seu coordenador, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, numa personalidade de grande destaque.
O problema da fome no Brasil, durante muito tempo, não foi abordado com a prioridade que merecia porque teorias econômicas defendiam que bastava controlar a inflação e promover o crescimento econômico para que os problemas dos mais pobres fossem resolvidos. No período recente, os governos puderam contar com novas teorias econômicas que defendem que o crescimento econômico pode acontecer em paralelo com a distribuição de renda e contanto com políticas ativas de proteção social, entre elas as de segurança alimentar. A par disso, o Brasil atingiu um sucesso inegável nas políticas de combate à fome, quando a FAO tirou o Brasil do Mapa da Fome no Mundo, o que foi possível com o controle da inflação, os aumentos reais do salário mínimo, mas também com políticas públicas de proteção social, como o Bolsa-Família, o BPC e projetos bem menos conhecidos como o PAA e o PNAE, entre outras políticas. Esses programas e projetos retiraram milhões de cidadãos da situação de indigência que se encontravam. Desses programas, o mais conhecido e polêmico é o bolsa-família, com certeza o mais importante para combater a indigência retratada nos lixões, porque garantia o mínimo necessário para matar a fome de milhões de famílias brasileiras. O menos conhecido é o Benefício de Prestação Continuada-BPC, mas de grande impacto econômico para os beneficiários, e também para os municípios, porque os valores envolvidos eram bem superiores ao bolsa-família, em virtude de conceder um salário mínimo para idosos que não conseguem se aposentar pela via normal e os deficientes de famílias pobres!
No entanto, o objetivo do artigo é chamar atenção para dois outros programas: o Programa de Aquisição de Alimentos- PAA; e Programa de Nacional de Alimentação Escolar-PNAE. O PAA garantiu renda para milhões de famílias de pequenos agricultores com a garantia de compra dos alimentos produzidos pelos trabalhadores. Os alimentos comprados pelos órgãos públicos são distribuídos para asilos, orfanatos, albergues, entre outras instituições e projetos, dando segurança alimentar a milhões de famílias pobres do Brasil. Esse programa também ajudou a deter o êxodo rural, aliviando as grandes e médias cidades da pressão populacional. O PNAE, programa que financia há muitas décadas a merenda escolar, incorporou uma inovação em 2009, obrigando as prefeituras a comprarem dos pequenos agricultores do município, ou da região, pelo menos 30% dos valores reservados para a merenda escolar. Os produtos comprados dos pequenos produtores são hortaliças, legumes, frutas, pães, mel, entre outros produtos frescos, o que permitiu melhorar muito a qualidade da merenda e a nutrição das crianças e adolescentes das escolas brasileiras. Dessa forma, os estudantes de escolas públicas usufruíram, na última década, de uma alimentação escolar mais diversificada, saborosa e nutritiva.
Os dois programas foram decisivos para melhorar a renda dos pequenos produtores rurais. Com isso, foi possível melhorar a renda dos moradores de milhares de municípios tipicamente rurais do Brasil, que abrigam 35% da população absoluta do Brasil. Porquanto, neste momento de crise médico-sanitária, é necessário a ampliação dos recursos para aqueles dois programas, sob pena de se transformar um círculo virtuoso em vicioso, porque menos investimento na pequena agricultura, significará empobrecimento dos municípios tipicamente rurais. Assim, a questão social é central, mas não é a única, porque também está em jogo a economia dos pequenos e médios municípios. Esses municípios dependem, de forma decisiva, da renda gerada no segmento agropecuário, inclusive da agricultura familiar, que produz cerca de 70% dos alimentos consumidos no país, e não apenas do agronegócio voltado para exportação e industrialização.
A falta de reforço do PAA poderá prejudicar a segurança alimentar da população mais pobre abrigada em entidades assistenciais e de famílias de baixa renda atingidas diretamente pelas consequências da crise. Por outro lado, a perda de capacidade orçamentária do PNAE atingirá outro segmento vulnerável da população brasileira, formada pelos estudantes do ensino básico atendidos por escolas públicas. Portanto, não se pode desconsiderar que estamos numa crise médico-sanitária, cuja consequências na segurança alimentar podem ser prejudiciais ao atendimento de amplos segmentos da população mais necessitada do país, indicando a necessidade de reforçar os recursos indispensáveis aos programas alimentares, sob pena de presenciarmos o retorno da fome no Brasil!
Prof. Dr. Luiz Alexandre Gonçalves Cunha é Diretor do Setor de Ciências Exatas e Naturais-SEXATAS