Direito do familiar do preso pleitear melhores condições carcerárias
Os advogados Aury Lopes Jr. e Rodrigo Silva falam sobre o assunto
Publicado: 16/11/2023, 15:24
Esta semana uma discussão tomou conta dos noticiários e redes sociais: a visita da esposa de um preso faccionado na sede do Ministério da Justiça. A direita aproveitou a situação para tentar vincular a imagem do governo à visitante. A esquerda se esquivou dizendo que foi uma falha de checagem no histórico da visitante.
Colunistas e jornalistas experimentados confabularam sobre o que pode ter motivado essa falha, bem como cobraram posicionamentos do ministro e do respectivo secretário, de maneira a criminalizar o episódio.
A posição da direita, da esquerda, dos jornalistas e das redes sociais convergem para o mesmo ponto: a supressão da reivindicação de condições dignas para os presos.
Se o viés de análise é a dignidade da pessoa humana, o sistema democrático ou mesmo os direitos humanos de uma maneira mais ampla, a discussão é odiosa e difamatória.
Qual o problema de um familiar ou esposa de preso pleitear por melhores condições carcerárias? Qual o problema de ser no Ministério da Justiça? Ou na ONU? O na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos? Ou no Judiciário? A resposta para todas as perguntas é, nenhum! Aliás, é o próprio exercício da cidadania, um ato digno de quem não se acomoda com o estado de coisas inconstitucional. Ou essas pessoas, pelo simples fato de serem familiares de um apenado, não possuem mais fala, lugar de fala e legitimidade para reclamar?
Nesse aspecto, o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu recentemente o óbvio. Que há uma violação massiva de direitos no sistema carcerário brasileiro. Inclusive, governo federal e governos estaduais deverão elaborar planos a serem submetidos ao STF até abril de 2024 “especialmente voltados para o controle da superlotação carcerária, da má qualidade das vagas existentes e da entrada e saída dos presos”.
Também é preciso recordar, ao contrário do que pode pensar algum leigo forjado no populismo penal, que a pena não legitima o Estado a barbarizar, enxovalhar, humilhar o preso. Também não está legitimada a tortura, ainda que dissimulada em sucessivas renovações no RDD (regime disciplinar diferenciado) e seu medieval isolamento celular, na privação de visita íntima, de alimentação digna, enfim, de condições civilizadas de cumprimento da pena. Não é legítima a reclamação de familiares, que acabam por “cumprir a pena junto”, dessas condições absolutamente insalubres e inconstitucionais de cumprimento de uma pena? De sucessivas prorrogações, por anos a fio, no (medieval) regime disciplinar diferenciado, já que a lei prevê a duração máxima de 360 dias (que já é excessiva)?
Desta feita, os presos (por intermédio de seus familiares) não possuem legitimidade para discutir essa realidade que tão bem conhecem? Eles, que vivem essas violações, que tem seus corpos e dignidades aviltadas todos os dias, não podem ter voz? Não podem postular e participar desta importante discussão?
Qualquer resposta contrária à essas perguntas, qualquer tentativa espúria de justificação, apenas possui como objetivo essa constante tentativa de invisibilização da pauta. Ou seja, após o cidadão ser encarcerado (não importa que ainda mantenha a condição de inocente, eis que quase metade dos presos não possuem condenação), o discurso criminalizador exige a sua eliminação. Não pode ter lugar para dormir adequado, não pode ter condições mínimas de higiene, não pode assistência de saúde, não pode ter laços familiares e, por não poder ou não ter direito a nada, tampouco pode ter voz!
E, talvez o mais grave, também não podem ter defesa técnica qualificada!
Este episódio mostra que a mídia, os políticos, as redes sociais, passaram a atacar a advogada contratada legitimamente (com contrato de prestação de serviço, diga-se), ou deixando nas entrelinhas ou dizendo diretamente, que advogado e cliente são iguais. Essa é uma absurda confusão que muitos insistem em fazer ou alimentar, maldosamente é claro.
Somos mais de 1 milhão de advogados no Brasil. A partir do momento que somos contratados para defender o direito de alguém, para assegurar um julgamento justo, para patrocinar uma causa, significa que somos “sócios” ou até “coautores” dos fatos?
Em última análise, quer dizer que se o advogado defender algum preso faccionado ele também faz parte desta facção? Absurdo, não é? Pois então, diariamente tais insinuações e até acusações, são levianamente feitas. Não seria mais fácil simplesmente fazer uma nova Constituição (eis que nesta, nem com Emenda Constitucional poderia ser alterada) determinando que certas pessoas não possuem direito de defesa?
Infelizmente, posicionamentos fascistas, preconceituosos e desumanos continuam a encontrar guarida. A criminalização da advocacia é uma triste realidade que precisa ser veementemente combatida.
O advogado não se confunde com o seu cliente — expressão já batida. Isso é básico e parte da imprensa continua a relutar a aceitar. E não é só isso, se não tiver coragem para ser advogado (ainda mais criminalista), atuando com destemor mesmo em casos em que a imprensa é impiedosa, sugerimos escolher outra profissão. Nosso Estatuto é claro no sentido de que temos o direito de exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional.
E o que dizer do nosso Código de Ética que exige que lutemos “sem receio pelo primado da Justiça”, que pugnemos “pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei, fazendo com que esta seja interpretada com retidão”, que nos empenhemos “na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito, e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses”?
Lutar, pugnar, empenhar-se pela causa daqueles que estão encarcerados, independentemente do crime que cometeram ou de seus históricos, é tão ou mais digno do que qualquer outra causa que o advogado seja necessário. É pelejar em uma briga historicamente perdida em que a sociedade, talvez, jamais entenderá. É resistir em favor daqueles que já estão inviabilizados, marginalizados, subjugados.
Com informações: Aury Lopes Jr. e Rodrigo Faucz Pereira e Silva