Paulo Coelho
No caminho de Kumano – o monge e a mensagem
Administrador | 30 de dezembro de 2016 - 04:20

(Termino hoje a narrativa de minha
experiência num caminho de peregrinação japonês, e meu primeiro contacto com o
Shugêndo, prática ancestral de desenvolvimento espiritual).
Estamos no local privado de um templo
budista. Escutamos o monge cantar, rezar em voz alta, tocar um instrumento de
percussão. Acendemos incenso e eu me lembro dos dias que passei em Kumano – a
visita aos três santuários xintoístas, o momento em que Katsura mudou com sua
energia a temperatura, a viagem de barco no rio, a briga provocada no lugar
onde os homens devem brigar, o entusiasmo das pessoas, o mosteiro na montanha
nevada, as noites com peixe cru e sakê quente. Naquela
mesma tarde estarei indo para uma cidade grande, um hotel confortável, um
avião, e uma cidade maior ainda: Tokyo.
Lembro-me das outras vezes que pratiquei
Shugêndo durante estes dias: andar sem agasalho numa temperatura abaixo de
zero, ficar acordado durante uma noite inteira, manter a testa encostada na
casca áspera de uma árvore até que a dor se deixasse anestesiar por si mesma.
Durante toda a viagem, as pessoas diziam
que o monge que tenho à minha frente recitando as preces é o maior especialista
de Shugêndo da região. Procuro me concentrar, mas aguardo ansioso o final da
cerimônia. Dali saímos para outro edifício, de onde posso ver uma gigantesca
cachoeira descendo montanha abaixo – 134 metros de altura, a maior do Japão.
Para minha surpresa (e de todos que estão
comigo), o monge traz três livros que escrevi, e pede que os autografe. Eu
aproveito para pedir autorização para gravar nossa conversa. O monge, que não
para de sorrir, diz que sim.
- Temos 48 cachoeiras na região – comenta.
– Para chegar até elas é preciso ter muita resistência física à dor e ao cansaço.
Uma das práticas do Shugêndo consiste em ficar debaixo da água gelada que cai,
até que ela limpe o corpo e a alma.
- Foi a dificuldade do caminho de Kumano
que criou o Shugêndo?
- Foi a necessidade de entender a natureza
que obrigou o homem a dominar a dor e ir além dos seus limites. Há 1.300 anos,
um monge que tinha dificuldade de se concentrar, descobriu que o cansaço e
superação dos obstáculos físicos podiam ajuda-lo na meditação. O monge ficou
fazendo este caminho até morrer; subindo e descendo montanhas, ficando sem
agasalho na neve, entrando todos os dias numa cachoeira gelada para meditar.
Como se transformou num ser iluminado, as pessoas resolveram seguir o seu
exemplo.
- O Shugêndo é uma prática budista?
- Não. É uma série de exercícios de
resistência física, que ajudam a alma a caminhar junto com o corpo.
- Se pudesse resumir numa frase o que
significa o Shugêndo e o caminho de Kumano, qual seria esta frase?
- Quem faz exercício físico, ganha
experiência espiritual, se tiver sua mente fixa em Deus enquanto está exigindo
o máximo de seu corpo.
- Até que ponto a dor física é importante?
- Ela tem um limite. Passando o limite da
dor, o espírito se fortalece. Os desejos da vida cotidiana perdem o sentido, e
o homem se purifica. O sofrimento vem do desejo, e não da dor.
O monge sorri, pergunta se quero ver a
cascata de perto – e com isso entendo que nossa conversa está terminada. Antes
de sair, ele se vira para mim:
- Não esqueça: procure ganhar todas as suas
batalhas, inclusive aquelas que você trava com você mesmo. Não tenha medo de
cicatrizes. Não tenha medo de vencer.
No dia seguinte, quando estou prestes a
embarcar, Katsura – a jovem de 29 anos que esteve presente desde o primeiro dia
em Kumano - aparece no aeroporto e me entrega um pequeno manuscrito em japonês,
com alguns dados históricos sobre Kumano. Eu abaixo a cabeça e peço que me
abençoe. Ela não hesita um segundo sequer: diz algumas palavras em japonês, e
quando levanto os olhos, vejo em seu rosto o sorriso de uma jovem que escolheu
ser guia de um caminho que ninguém conhece, que aprendeu a dominar uma dor que
nem todos vão sentir, que entende que o caminho é feito quando se anda, e não
quando se pensa sobre ele.