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No caminho de Kumano – encostado na árvore (III) (22/12)

No caminho de Kumano – encostado na árvore (III) (22/12)

Imagem ilustrativa da imagem No caminho de Kumano – encostado na árvore (III) (22/12)
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(Nas duas colunas anteriores, falo da ida ao caminho de Kumano, no Japão, onde descubro que durante a peregrinação existe uma prática espiritual, o Shugêndo).

- Já ouviu falar em shugêndo? Disseram-me que é uma relação de amor e dor com a natureza – comento com o biólogo que Katsura me apresentou, e que agora caminha comigo pelas montanhas.

- Shugêndo significa: “o caminho da arte de acumulação de experiência” – responde ele, mostrando que seu interesse vai além da variedade dos insetos da região - Disciplinar seu corpo para aceitar tudo que a natureza tem para oferecer; assim você também educa sua alma para o que Deus nos oferece. Olhe a sua volta: a natureza é mulher, e como toda mulher, nos ensina de uma maneira diferente. Encoste sua coluna vertebral na árvore.

Ele me aponta um cedro de mais de dois mil anos, com uma grossa corda estendida a sua volta.  Na religião local, tudo que está circundado por uma corda é uma manifestação especial da Deusa da Criação, e considerado um lugar sagrado.

Eu encosto minhas costas no cedro, fecho os olhos, e o biólogo começa a contar-me que naquela região existem apenas dez árvores como aquela. Quando as peregrinações começaram, no ano 975, o lugar estava coberto de cedros milenares e árvores centenárias, cujas folhas – diz o biólogo – brilhavam com o sol. No século XIX, quando a revolução Meiji obrigou a separação dos templos xintoístas e budistas (antes disso, muitos deles ocupavam a mesma área, e conviviam em perfeita paz), florestas inteiras foram derrubadas, para que novos lugares de culto pudessem ser construídos.

- Tudo que é vivo contem energia, e esta energia se comunica entre si. Se você mantém sua coluna encostada no tronco, o espírito que habita a árvore irá conversar com o seu espírito, e tranquilizá-lo de qualquer aflição. Claro que, como biólogo, devo dizer que é a emanação de calor, etc.. mas sei que também existe verdade na explicação mágica dos meus antepassados.

Eu estou de olhos fechados, e procuro imaginar a seiva da árvore subindo das raízes até as folhas, e ao fazer este movimento, provocando uma onda de energia que afeta tudo ao redor. Meu espírito vai ficando em paz, deixo a fantasia funcionar, e de repente me imagino dentro do caule, sem pensar, sem meditar, apenas em repouso absoluto.

- Aqui perto, por exemplo, os sinais da natureza decidiram o futuro da região.

Ouço a voz do biólogo me contando que, no ano 1185, dois samurais lutavam ferozmente pelo poder no Japão. O governador de Kumano não sabia quem iria vencer; certo que a natureza sempre tem a resposta, colocou sete galos vestidos de vermelho para lutar contra outros sete vestidos de branco. Ganharam os de branco, o governador apoiou um dos guerreiros, e fez a aposta certa: em pouco tempo, aquele samurai dominava o país.

- Agora me diga: você prefere acreditar que o apoio do governador que decidiu a luta, ou os galos deram o sinal divino sobre quem terminaria conquistando o poder?

- Eu acredito em sinais – respondo, saindo mentalmente do meu confortável estado vegetal, e abrindo os olhos. – Foram os sinais que me trouxeram até aqui, embora eu ainda não consiga entender direito o que estou fazendo.  

- As viagens sagradas a Kumano começaram muito antes da introdução do budismo no Japão; até hoje existem por aqui homens e mulheres que passam, de geração em geração, a ideia de que um “casamento” com tudo que está a sua volta deve ser feito como um verdadeiro matrimônio: com entrega, alegrias, sofrimentos, mas sempre juntos. Utilizavam o Shugêndo para permitir esta entrega total, sem medo.

Abro os olhos, e sinto-me repousado pela energia que a árvore me transmitiu. 

- Você pode me ensinar um exercício de Shugêndo?  - O único que sei é amarrar-se numa corda e atirar-se contra as rochas de um despenhadeiro; francamente, não tenho coragem para isso.

- Por que você quer aprender?

- Porque sempre considerei que o caminho espiritual não envolve necessariamente o sacrifício e a dor. Mas, como disse alguém que encontrei nesta viagem, é preciso aprender o que se precisa, não o que se quer.

- Cada um faz o exercício que a Terra pedir; conheço um homem que subiu e desceu mil vezes, durante mil dias, uma montanha perto daqui. Se a Deusa quiser que você pratique Shugêndo, ela lhe dirá como fazer.

Ele tinha razão. No dia seguinte, isso aconteceu.

 (continua na próxima semana)

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