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30 anos: Crianças e adolescentes sujeitos de direitos
Da Redação | 14 de outubro de 2020 - 03:41
Por Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Nesses últimos quarenta e três anos, minha vivência como
profissional do Ministério Público fez por fortalecer, sempre e mais, a crença
sincera de que a tarefa preferencial, para todos que desejam ver construída uma
sociedade melhor e mais justa, deve estar umbilicalmente ligada à efetivação
dos direitos já prometidos no ordenamento jurídico para as nossas crianças e
adolescentes.
Não alcançaremos uma desejada sociedade melhor e mais justa
se continuarmos perdendo gerações de crianças e adolescentes para a subcidadania,
com os seus perversos contornos da exploração, opressão e exclusão social.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cumprindo
comando da Constituição Federal, materializou proposta de se dar tratamento
privilegiado à população infanto-juvenil, rompendo com o mito de que a
igualdade resta assegurada ao tempo em que todos recebem tratamento idêntico
perante a lei.
Com indiscutível acerto, concluiu o legislador do ECA que,
quando a realidade social está a indicar desigualdade, tratar todos de forma
igual perante a lei, antes da garantia de isonomia, conduz à cristalização das
desigualdades, dando-se, muitas vezes, contornos de legalidade a situações de
afastamento do exercício dos direitos elementares da cidadania. Dessa maneira,
como fórmula para estabelecer a isonomia material, entendeu-se indispensável
que as crianças e adolescentes marginalizados na realidade social (vale dizer,
que se encontram à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) venham a
receber, pela lei, um tratamento desigual, necessariamente privilegiado.
Sob esse enfoque é que encontramos como suporte teórico para
o ECA a doutrina da proteção integral, cuja tese fundamental estabelece
incumbir à lei assegurar às crianças e adolescentes a possibilidade do
exercício dos seus direitos fundamentais. Assim, pela nova legislação, as
crianças e adolescentes não podem mais ser tratados como meros objetos de
intervenção da família, da sociedade e do Estado, devendo-se agora
reconhecê-los sujeitos dos direitos elementares da pessoa humana em peculiar
fase desenvolvimento, de maneira a propiciar o surgimento, na maioria dos
casos, de verdadeira ponte de ouro entre a marginalidade e a cidadania plena.
Alertado pela realidade social e alentado pelo propósito de
justiça, o legislador do ECA estabeleceu um conjunto de normas tendentes a
colocar a infância e juventude a salvo de toda e qualquer forma de negligência,
discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão, cumprindo
mandamento constitucional no sentido de ser dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária (art. 227, da cf).
Insista-se no sentido de que a proposta da lei é o da
universalização dos direitos humanos relacionados à infância e juventude,
alcançando assim todas as crianças e adolescentes. Ou seja, numa perspectiva de
justiça e solidariedade, a lei quer que todas as crianças e adolescentes possam
exercitar os direitos que parte da população infantojuvenil já exercita.
Como interveniente obrigatório nas questões que afetam as
crianças e adolescentes encontra-se a Justiça da Infância e Juventude, que
agora, em razão do ECA, assume função de ser o espaço destinado à efetivação
dos direitos da população infantojuvenil. A ideia central é a de que as regras
enunciadas na legislação se constituem comandos obrigatórios à família, à
sociedade e ao Estado, aguardando-se, especialmente por parte do poder público,
o cumprimento das normas estabelecidas. Todavia, se o administrador,
espontaneamente, não tornar concreto o que lhe foi determinado pela lei,
comparece disponível ao interessado um conjunto de medidas judiciais
especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional,
dos direitos violados. E porque se acredita no Ministério Público como fiel
defensor de um Estado genuinamente democrático, o legislador determinou-lhe o
zelo pelos interesses individuais, coletivos e difusos ligados à proteção da
infância e da juventude, que não raras vezes implicará cobrar das autoridades
públicas uma atuação mais eficiente no fornecimento de educação, alimentação,
saúde, profissionalização, cultura, lazer, entre outros direitos previstos no
ordenamento jurídico. A Defensoria Pública, igualmente, tem idêntica atribuição
e importância.
Consigne-se, nesse passo, a importância dos Conselhos dos
Direitos das Crianças e dos Adolescentes, previstos no art. 88, inc. II, do
ECA, como órgãos com caráter deliberativo (são definidores da política pública
de atendimento à infância e juventude nas esferas municipais, estaduais e
nacional) e que não podem prescindir da participação popular (diga-se paritária,
ou seja, apresentando igual número entre os representantes dos órgãos
governamentais e os indicados pelas entidades que atuam na defesa – ou no
atendimento – dos direitos das crianças e dos adolescentes).
Nesse contexto, igualmente se cuidando da desejada
implementação do ECA e no que diz respeito à política de atendimento à infância
e juventude de se reforçar o raciocínio de que – além da família (campo
privilegiado para o afeto e principal agência de socialização do ser humano) e
da escola (que, como quer o comando constitucional, deve visar ao pleno
desenvolvimento da pessoa, sua qualificação para o trabalho e, principalmente,
seu preparo para o futuro exercício da cidadania) – lugar de criança é nos
orçamentos públicos, cumprindo-se o princípio constitucional da prioridade
absoluta no que tange à preferência na formulação e execução das políticas
públicas, assim como, especialmente, à destinação privilegiada de recursos para
a área (art. 4º do ECA), tanto que o Ministério Público do Paraná, em conjunto
com o Centro Marista de Defesa da Infância, lançaram a Plataforma OCA
(Orçamento Criança e Adolescente), desenvolvendo metodologia que identifica
quanto cada Município paranaense destina e executa para políticas de atenção à
infância e adolescência.
Não se tenha dúvida de que esse é o caminho: fortalecimento
dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente de maneira que, em todos
os Municípios, seja realizado diagnóstico da efetiva situação da infância e da
juventude para restar traçada adequada política de atendimento às necessidades
detectadas. Como motivo a festejar, cita-se, em tal seara, decisão do então
presidente do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “não há dúvida quanto
à possibilidade jurídica de determinação judicial para o Poder Executivo
concretizar políticas públicas constitucionalmente definidas, como no presente
caso, em que o comando constitucional exige, com absoluta prioridade, a
proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, claramente definida no
Estatuto da Criança e do Adolescente”, e que “essa política prioritária e
constitucionalmente definida deve ser levada em conta pelas previsões
orçamentárias, como forma de aproximar a atuação administrativa e legislativa
(Annäherungstheorie) às determinações constitucionais que concretizam o direito
fundamental de proteção da criança e do adolescente” (Min. Gilmar Mendes,
Suspensão de Liminar 235-0, de Tocantins, datada de 8 de julho de 2008).
Igualmente, vale mencionar decisão do Superior Tribunal de Justiça no sentido
da obrigatoriedade de efetivação, por parte do administrador público, da
política deliberada pelos Conselhos dos Direitos: “1. Na atualidade, o império
da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem,
inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador. 2.
Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de
política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela
específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender
a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido” (resp
493811, 2ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 15/03/04).
Finalmente, na esteira do comando constitucional indicativo
da descentralização político-administrativa e consequente municipalização das
ações, indispensável comparece o estabelecimento de rede de proteção capaz de
proporcionar a todas as crianças e adolescentes o atendimento dos seus direitos
fundamentais (v. nesse sentido a publicação do Ministério Público do Paraná
intitulada “Município que respeita a criança – Manual de orientação aos
Gestores Municipais”), com destaque para os Conselhos Tutelares, enquanto
órgãos encarregados não só de fazer o atendimento das crianças e adolescentes
em situação de risco pessoal, familiar e social, mas também de fiscalizar o
funcionamento de todo o sistema de garantia dos direitos das crianças e
adolescentes.
A expectativa democrática nestes 30 anos de vigência da lei
é então a de que, quando da efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente
pela ação dos poderes públicos (com a participação obrigatória da sociedade
civil) e, se necessário, pela intervenção positiva por parte, especialmente, do
Ministério Público e do Poder Judiciário no Juízo da Infância e Juventude,
estar-se-á colaborando decisivamente para que a República Federativa do Brasil,
salvaguardado o princípio de respeito à dignidade humana, buscando-se a
superação das desigualdades sociais e a erradicação da pobreza, venha a
alcançar, o quanto antes, seu objetivo fundamental: o de instalar – digo eu, a
partir do atendimento aos direitos das crianças e adolescentes – uma sociedade
livre, justa e solidária.
* Procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos.