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Protázio Burgardt
Protázio Burgardt -

Por Noeval de Quadros

Havia uma revista, nos anos 60 e 70, que fazia muito sucesso: Seleções do Reader’s Digest. Tinha artigos muito interessantes. Um que eu gostava muito tinha o título “Meu herói favorito” e abordava biografias de pessoas cuja vida tinha sido marcante.

Pois bem. Eu era ainda jovem quando conheci minha esposa e o seu tio era para mim o modelo deste “herói favorito”. “Um dia vou escrever sobre o senhor”, eu dizia. Eu também o chamava de tio. O Tio Protázio Burgardt é daquelas figuras incomuns das quais ninguém consegue esquecer.

No dia 22 de julho de 2020 ele estaria fazendo 100 anos, se vivo estivesse. Porém nos deixou no dia 5 de janeiro de 2020.    E quando fui ao seu enterro, pensei: “Um dia, vou cumprir a promessa de escrever sobre esse tio porque a sua vida dá mais que um artigo, dá muitos livros”.  Não é só ele, claro, parece um contrassenso; eu tenho muitos heróis favoritos, como, por exemplo, meu sogro, o vô Balduino, tio João, meus pais e outros. Não vou citar todos agora. Mas hoje vou falar um pouco desse tio que teve uma vida longa e profícua.

O lado que eu mais gostava nele era seu bom-humor. De tudo ele fazia graça. Quando atendia o telefone, ele brincava: “Quem está lá?”  e emendava “quem está cá sou eu”.  Outro dos seus ditos: “Mulheres, obedecei vossos maridos”.  Dizia que isso estava na Bíblia, então ele não poderia mudar. E quando a gente retrucava se não tinha nada para os maridos, ele dizia: “A Bíblia fala ‘Maridos, amai vossas mulheres’. Mas não manda obedecer”. Quando a gente dizia alguma coisa que ele gostava, respondia ligeiro: “É recíproco.”  Doutras vezes, ele fazia alguma pegadinha e logo emendava: “Não se encabule”. Antes de desligar o telefone, falava: “...um beijo no seu coração!”

Quantas vezes ele colocava uma cobra de plástico no meio da sala só para surpreender quem passava, desavisado. Os gritos de susto eram constantes e ele se divertia com essas brincadeiras ingênuas. Doutra feita, colocava uma espécie de “caixa de risadas” embaixo da almofada: quando alguém sentava sobre a almofada, lá disparava aquelas gargalhadas, às quais se somava a dele, sempre fazendo da vida uma grande alegria.

Era Primeiro-Tenente da Reserva. Mesmo após reformado, nunca deixou de ter alguma ocupação útil. Após deixar o Exército, trabalhou por dez anos na antiga COHAB. De sólida formação religiosa, durante mais de 70 anos, foi voluntário do Asilo São Vicente de Paula e, depois,  membro da Associação dos  Vicentinos. Cuidava dos idosos e dos carentes como se fossem todos de sua família.

Sua casa era sempre cheia de gente, que ele e a tia Hilda, sua mulher, faziam questão de receber com um sorriso e com um inigualável cuque de farofa com creme. Tiveram 10 filhos. Porém, abriram as portas de sua casa para todos os parentes que pudessem vir a P.Grossa, para estudar ou trabalhar, os que se autoapelidaram de “agregados”. Foram dezenas. O primeiro deles foi minha sogra Adair, que veio nos anos 50 de Jaguariaíva para estudar em P.Grossa e foi morar na casa do meu herói favorito. Minha esposa Carla também veio de Foz do Iguaçu nos anos 70 e morou na casa do tio Protázio e tia Hilda. Foi lá que a conheci e, por isso, tenho as melhores lembranças. O último foi o neto Murilo, que também aqui veio morar já que os pais estavam em Curitiba. Era só colocar mais água no feijão que tinha espaço para todos. Sua casa albergava quem viesse e ali todos foram muito felizes e bem tratados pelos tios e seus filhos.

Para todos, filhos e agregados, ele dava presentes nos aniversários, na Páscoa, no Natal. Costumava estender um fio de barbante pela sala e pendurar, com grampos de roupa, notas de dinheiro para cada um, no dia de Ano Novo. Era uma festa levantar cedo e procurar o presente de cada um. Aquele agrado era o desejo de um Ótimo Novo Ano para todos. Ele se divertia mais que qualquer um com tudo isso.

Adorava jogar buraco e por anos a fio tinha um momento sagrado do dia em que jogava cartas com amigos como Nina e Edmundo, ou a esposa Hilda, ou com outro voluntário da vez. Mais tarde, quando faleceram estes velhos “adversários do buraco” sempre vinha um filho ou sobrinho “perder” para ele. Sim, porque ele não gostava de perder. Quando chegava a hora determinada, ele já estava com a mesa posta, prontinha para receber o desafiante do dia! Que sempre levava uma “surra” no jogo de baralho e isto divertia muito o “tiozão”, como era chamado.  Tia Arlete e a minha sogra Adair por muitos anos foram suas “adversárias” no jogo. Elas também adoravam esses momentos. O seu filho Maurício era um que vinha de sua casa todas as tardes, por longo tempo, para jogar buraco. Se não fosse isso, o dia não estaria completo para o tio.

Adorava dançar e conversar. Sua conversa era sempre prazerosa, recheada de boas histórias. Ia em todos os velórios, de amigos ou não, nas capelas próximas de sua casa. Levava para todos os que ali estavam balinhas de banana, para adoçar um pouco a amargura daqueles que pranteavam seus mortos.

Sempre dizia, sobre o sofrimento: ”Quem não tem, ainda vem”. Não era um mau agouro. Era um alerta de muita sabedoria para que aproveitássemos bem enquanto o céu estava azul e as coisas calmas.

Perto de sua casa, às vezes apareciam algumas mulheres, à espera de um romance. Ali ficavam rodando bolsas nas esquinas. Ele as chamava de “amigas da noite”. Jamais censurou porque não lhes conhecia a vida a fundo. Não tinha preconceito com nada nem com ninguém. Seu coração estava sempre preenchido de amor pela Humanidade inteira.

Meu herói favorito era de uma família muito grande, de 8 irmãos. A origem dele, do irmão Balduíno (querido avô da minha esposa) e dos demais foi na Colonia Tavares Bastos, perto do Parque de Exposições de Ponta Grossa. Pouco a pouco, todos se foram desta vida e só ele ficou.

Nos últimos tempos, recebia a visita de dois ou três amigos e era uma reunião curiosa. Todos eles, e também o tio Protázio, tinham mais de 90 anos. Eu brincava que, somando as idades, dava uma eternidade. Conversavam sobre as coisas do passado, do tempo “que era bom”.

Nos últimos anos, já não saía mais de casa nem mesmo para ir visitar os idosos do Asilo, a quem ele por décadas atendeu. Ficou mais recluso em casa, saúde frágil, recebendo os cuidados, o desvelo e o carinho dos filhos, sobretudo da Vera e Tânia, que por anos moraram com ele. Todos o tratavam com muito amor e os que moravam fora, vinham visitá-lo com frequência.

O único passeio que se permitia era ir ao Recanto Monteiro/Neuca. Naquele magnífico local de entretenimento, ele dispunha de um quarto só para si. Gostava de ver a algazarra das crianças que desciam nos tobogãs d’água e depois iam para a pescaria, para outras brincadeiras. Ali ele se permitia lembrar dos tempos de criança e de jovem, nos passeios de carroça e nas festas juninas com os primos na Colônia Tavares Bastos, local onde moravam e se encontravam naquela época as famílias Burgardt, Ditzel, Schwab, Buss, Krüger, Nann e outras.

Divertia-se fazendo arte em tijolos, que ele manejava com maestria, pintando e fabricando verdadeiras obras-primas, em geral porta-canetas, com os quais presenteava os amigos. Sempre foi assim, desprendido, caridoso, brincalhão e otimista, um verdadeiro dom-quixote em meio às dificuldades da vida.

E num domingo ensolarado,  dia 5 de janeiro, ele se despediu de todos nós. Deixou muitas saudades. Doeu muito quando recebi o telefonema de que ele tinha partido. Eu sei que ele foi se encontrar com tia Hilda, com o Geraldinho, com todos os amados que o precederam. Mas o nosso herói favorito faz muita falta. Sobretudo nestes tempos bicudos, sempre penso em que ele estaria fazendo uma brincadeira, uma piada, pregando uma peça em alguém, alegrando um pouco a vida das pessoas tão sofridas, que estamos todos, em função desta pandemia. A vida ficou menos engraçada depois que ele se foi.

Neste 22 de julho estou certo de que, de onde estiver, ele assoprará a velinha e, piscando um olho, com sorriso maroto, dirá : “Está láááá!...”

Mas o que é o partir, do lado de cá, senão o chegar, do lado de lá? Como disse Santo Agostinho, “a morte não é nada./ Vocês continuam vivendo/ no mundo das criaturas,/eu estou vivendo/ no mundo do Criador./ Não utilizem um tom solene/ou triste, continuem a rir/daquilo que nos fazia rir juntos./ Rezem, sorriam, pensem em mim./ Rezem por mim./ Eu não estou longe,/ apenas estou/ do outro lado do Caminho.../  Você que aí ficou,/ siga em frente,/ a vida continua,/linda e bela/ como sempre foi...”

Pois é, tiozão. Um dia, há quase 50 anos, eu prometi que ia falar do meu herói favorito, que eu conheci naqueles tempos. Pena que não tenha mais essa Seção na revista Seleções. Mas fica aqui registrada minha homenagem ao eterno menino Protázio que vivia dentro de você e que continua a viver na minha memória e de tantas outras pessoas que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Obrigado, tiozão, por tudo.

Noeval de Quadros

e-mail: [email protected]

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