Debates
Cultura enlatada
Da Redação | 30 de novembro de 2019 - 02:58
Por Mário Sérgio de Melo
Outro dia um filme que passava num canal fechado na TV impressionou-me
pelo realismo dos personagens, parecidos com pessoas que vejo no dia a dia, e pela
intensidade de emoções, sentimentos, ações desses personagens. O nome do filme,
de origem russa: “Sem amor”. O tema: drama familiar. O diretor: Andrey
Zvyagintsev.
O filme surpreende pelo clima que cria em torno de tema tão
crucial: o amor filial. Deve ter sido uma produção barata comparada às
superproduções estadunidenses que inundam nossas telas, e que atraem multidões
e arrecadam milhões. Por que filmes realistas, baratos, sobre temas humanos
essenciais, que aliam arte, reflexão e entretenimento, comumente vindos do
leste europeu e do oriente, são tão raros e costumam ser fracassos de bilheteria
entre nós?
Será que vivemos a civilização da cultura enlatada? Não só
no cinema, mas na literatura, na música, no teatro... Para consumo rápido, que
nos entorpece mais do que nos encoraja e desperta sentimentos e reflexão? Uma
cultura que não emancipa, ao contrário, submete? Sentir e refletir estão na
contramão da civilização baseada no consumo rápido e insaciável, senão entra em
colapso. Não é assim o mundo atual, em que os produtos têm vida útil programada
para que tenhamos que trocá-los logo por outros, senão a produção cai, a
fábrica vai à falência? E o mesmo não se passa com a indústria cultural, que
esqueceu o sentido da palavra cultura, que é cultivar a humanidade dentro de
nós? Cultura passou a ser um produto como qualquer outro no mundo consumista,
precisa ser vendido rápido e em grande quantidade.
Hoje uma das ciências que mais avança é a ciência do
controle, da manipulação do comportamento humano. Somos bombardeados a todo
instante por técnicas cada vez mais sofisticadas e eficazes para pensarmos, desejarmos,
comprarmos, agirmos, votarmos da forma como nossos manipuladores desejam. Somos
como eles querem, perdemos a identidade de ser pensante e sensível, com
singularidades e aspirações intrínsecas. Somos treinados para responder com
reflexos condicionados, como deseja o mercado.
O resultado dessa eficaz manipulação revela-se nos filmes
que assistimos, livros que lemos, músicas que escutamos, compras que fazemos,
ideologias que defendemos, governantes que elegemos, ícones que idolatramos ou que
amaldiçoamos.
O contrário da cultura enlatada seria a cultura popular,
impregnada da autenticidade da realidade da vida de um povo, sua tradição,
território, lutas, conquistas, subjetividade. No Brasil, onde a cultura popular
ainda consegue sobreviver à terraplanagem da cultura enlatada? Talvez nos
rincões da Amazônia, no sertão nordestino?
Não por acaso o filme mais falado e premiado produzido no
País nos últimos tempos, o Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano
Dornelles, aborda justamente a confronto do tradicional com a enlatada farsa no
sertão nordestino.
Urge resgatar a cultura autêntica, expressa na cultura
tradicional, na cultura popular.
Mário Sérgio de Melo é Geólogo, professor aposentado do Departamento de Geociências da UEPG