Coluna Fragmentos: Os “viajantes” europeus e o Brasil do século XIX
A coluna ‘Fragmentos’, assinada pelo historiador Niltonci Batista Chaves, publicada entre 2007 e 2011, retorna como parte do projeto '200 Vezes PG', sendo publicada diariamente entre os dias 28 de fevereiro e 15 de setembro
Publicado: 23/08/2023, 00:05
A partir de meados do século XIX as pessoas espalhadas ao redor do mundo acompanharam – atônitas – a ocorrência de grandes transformações no campo da ciência e da tecnologia. A descoberta de novas formas de energia, a melhoria e a ampliação da capacidade produtiva das indústrias inglesas e o avanço das pesquisas na busca de novas riquezas naturais, fizeram daquele um século singular para a contemporaneidade.
Naquele momento, a ciência parecia ser capaz de responder e de resolver todos os problemas, dúvidas e angústias da humanidade. Na literatura, a ficção científica enfatizava tal visão e viajar ao centro da terra, dar a volta ao redor do mundo em 80 dias ou mergulhar a vinte mil léguas submarinas, como fez crer o francês Julio Verne, eram coisas que já não pareciam mais ser impossíveis.
Para os países industrializados europeus, condutores desse processo de mudanças e detentores do saber científico-tecnológico, as periferias mundiais eram regiões que deveriam ser estudadas e exploradas. Nesse sentido, o Brasil, dono de um território gigantesco e de uma flora exótica e exuberante, se projetou como um dos principais campos de investigação para naturalistas, geólogos, geógrafos, engenheiros, médicos, agrônomos, mineralogistas, cronistas, pintores e outros intelectuais e estudiosos que acabaram desembarcando em nossas terras.
O objetivo principal desses “viajantes” (como passaram a ser denominados pela nossa literatura) era investigar e produzir relatos – seja na forma de textos, estatísticas ou pinturas – a respeito do que era a vida dos brasileiros nos Oitocentos e quais as potenciais riquezas disponíveis em nosso país que poderiam interessar como matéria-prima para as indústrias européias.
Foi assim que figuras como Auguste de Saint Hilaire, John Mawe, Carl Burmeister (estes ainda no começo do século XIX), Robert Avé-Lallemant, Jean Baptiste Debret, Karl Von Marthius, Aimé Bonpland, Thomas Bigg-Wither, Modesto Brocos e Alexander Von Humboldt passaram por nosso país e produziram fartos relatórios das mais diversas naturezas. Muitos desses – como o caso de Avé-Lallemant e Brocos – acabaram ficando por aqui até o final de suas vidas, outros retornaram para seus países de origem e continuaram a escrever sobre o Brasil durante vários anos.
A publicidade do Guaraná Antarctica, publicada pelo JM em 1970, destacava a participação da dupla Bonpland e Von Humboldt na “descoberta” do guaraná amazônico e na sua popularização para o “mundo civilizado”. Essa peça publicitária só não considerou que tal procedimento significou, ao mesmo tempo, o avanço do processo de exploração das riquezas naturais brasileiras pelos países – ditos – “civilizados” europeus.
É inegável que os estudos deixados por estes “viajantes” serviram para que o Brasil se tornasse mais conhecido para os próprios brasileiros – sobretudo para as autoridades e para a intelectualidade nacional – mas, ao mesmo tempo, também subsidiaram as investidas do capital internacional em nosso país, contribuindo para ampliar a histórica dependência econômica brasileira.
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Os “viajantes” nos Campos Gerais
Entre os europeus que passaram pela região dos Campos Gerais – mais especificamente por Ponta Grossa – destacam-se especialmente dois nomes: Saint-Hilaire e Bigg-Wither. O primeiro cruzou nossas terras ainda na década de 1820 e produziu um minucioso relatório a respeito de tudo que encontrou por aqui: o comportamento humano, a fauna e a flora, as práticas sociais etc. Já o segundo, passou por Ponta Grossa no começo da década de 1870 e tinha como principal preocupação a produção de um estudo técnico sobre a topografia do sul do país. Seus estudos serviram de base para que, cerca de duas décadas depois, fosse construída a Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande.
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O pensamento científico nacional
Uma das grandes contribuições deixadas pelos “viajantes” europeus que passaram pelo Brasil no decorrer do século XIX foi a disseminação de diferentes conhecimentos técnicos. De certa forma, tais figuras acabaram funcionando como popularizadores do saber científico, fazendo com que, aos poucos, tais saberes passassem a ser incorporados pela população brasileira. Infelizmente, muitas vezes, essa incorporação veio acompanhada da negação e até da condenação dos saberes populares brasileiros considerados, equivocadamente, como sinônimos de inferioridade e de ignorância.
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O material original, com mais de 170 colunas, será republicado na íntegra e sem sofrer alterações. Por isso, buscando respeitar o teor histórico das publicações, o material apresentará elementos e discussões datadas por tratarem-se de produções com mais de uma década de lançamento. Além das republicações, mais de 20 colunas inéditas serão publicadas. Completando assim 200 publicações.
Publicada originalmente no dia 06 de março de 2011.
Coluna assinada por Amanda Cieslak Kapp, historiadora, doutora em história pela UFPR e professora da Unibrasil e do Instituto Federal do Paraná/Campus Pinhais.