Competência para processar crimes de homofobia e transfobia
Felipe Oliveira, mestrando em direito, fala sobre o assunto
Publicado: 26/10/2023, 16:36
De início, cumpre registrar que o artigo 5º, XLII, da CRFB estabelece que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". Vê-se, pois, um mandado de criminalização (norma de eficácia limitada), que depende de uma regulamentação legislativa para produzir todos os seus efeitos. Assim, poucos meses após a promulgação da Constituição, entrou em vigor a Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Ademais, o Brasil tem se comprometido internacionalmente no repúdio ao racismo, um dos princípios adotados pela República Federativa nas suas relações internacionais (artigo 4º, VIII). Sob esse viés, o Estado brasileiro promulgou a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, da ONU, em 1969, por meio do Decreto nº 65.810.
Nesse toar, em junho de 2019, o STF, no julgamento da ADO nº 26/DF, de relatoria do ministro Celso de Mello, reconheceu o "estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTI+".
Assim, deu interpretação conforme à Constituição "para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional"
Na mesma linha, o STF julgou procedente o MI nº 4.733/DF, de relatoria do Min. Edson Fachin, para "reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional" e "aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/1989 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero"
Feita essa breve introdução, a questão a ser aqui exposta não busca adentrar no mérito desses julgamentos, mas sim em um ponto no qual o STF não se manifestou: a competência para o processamento e julgamento dos crimes de homofobia e transfobia.
Como é cediço, a CRFB dispõe no inciso V do artigo 109 que compete à Justiça Federal processar e julgar "os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente".
Nesse passo, a criminalização do racismo no ordenamento jurídico brasileiro harmoniza-se com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, promulgada pelo Brasil mediante o Decreto nº 65.810/1969. Logo, atrai-se a competência da JF, com fulcro no artigo 109, V.
Outrossim, no julgamento do RE nº 628.624/MG, com repercussão geral reconhecida, analisando alguns crimes tipificados no ECA, o STF estabeleceu três requisitos cumulativos necessários para atrair a competência da JF para processamento e julgamento de infrações penais: "a) o fato esteja previsto como crime no Brasil e no estrangeiro; b) o Brasil seja signatário de convenção ou tratado internacional por meio do qual assume o compromisso de reprimir criminalmente aquela espécie delitiva; e c) a conduta tenha ao menos se iniciado no Brasil e o resultado tenha ocorrido, ou devesse ter ocorrido no exterior, ou reciprocamente"
Nessa mesma toada, é o entendimento do STJ:
"[...] 5. Muito embora o paradigma da repercussão geral diga respeito à pornografia infantil, o mesmo raciocínio se aplica ao caso concreto, na medida em que o acórdão da Suprema Corte vem repisar o disposto na Constituição Federal, que reconhece a competência da Justiça Federal não apenas no caso de acesso da publicação por alguém no estrangeiro, mas também nas hipóteses em que a amplitude do meio de divulgação tenha o condão de possibilitar o acesso. No caso dos autos, diante da potencialidade de o material disponibilizado na internet ser acessado no exterior, está configurada a competência da Justiça Federal, ainda que o conteúdo não tenha sido efetivamente visualizado fora do território nacional. [...]."
(CC n] 163.420/PR, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 13/5/2020, DJe de 1/6/2020).
Contudo, no que concerne à proteção da comunidade LGBTQIAPN+, à época do julgamento do STF (junho de 2019), o Brasil não era signatário de tratado ou convenção internacional que reprimisse condutas homofóbicas e transfóbicas.
Conquanto tenha havido a promulgação da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1969, ela não engloba, em seu artigo I.1, a discriminação decorrente da orientação sexual do indivíduo: "Nesta Convenção, a expressão ‘discriminação racial’ significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica [...]".
Porém, em junho de 2013, foi aprovada, durante a 43º Sessão Ordinária da Assembleia Geral da OEA, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Esse é o primeiro documento internacional que abarca a discriminação baseada em orientação sexual, identidade e expressão de gênero, posto que o seu artigo 1 é bem mais amplo que o da Convenção de 1965, trazendo diferentes conceitos de discriminação, racismo e intolerância:
1) Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica.
2) Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
3) Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.
4) Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial. O racismo ocasiona desigualdades raciais e a noção de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificadas. Toda teoria, doutrina, ideologia e conjunto de ideias racistas descritas neste Artigo são cientificamente falsas, moralmente censuráveis, socialmente injustas e contrárias aos princípios fundamentais do Direito Internacional e, portanto, perturbam gravemente a paz e a segurança internacional, sendo, dessa maneira, condenadas pelos Estados Partes.
5) As medidas especiais ou de ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de grupos que requeiram essa proteção não constituirão discriminação racial, desde que essas medidas não levem à manutenção de direitos separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma vez alcançados seus objetivos.
6) Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos.
Ocorre que, embora tenha participado ativamente na aprovação da Convenção, em 2019 o Brasil ainda não havia promulgado o mencionado documento, estando o processo, à época, parado desde julho de 2018 e em trâmite na Câmara dos Deputados desde novembro de 2017
Devido a isso, criou-se o entendimento de que restava afastada a competência da JF para processamento e julgamento dos delitos de homofobia e transfobia, porquanto o Estado brasileiro ainda não era signatário nem havia promulgado qualquer convenção ou tratado internacional que repreendesse tais condutas criminosas.
Com base nesse raciocínio, a 2ª CCR do MPF, órgão incumbido da coordenação, da integração e da revisão do exercício funcional dos membros do MPF na área criminal, aprovou o Enunciado nº 105: "Não é de atribuição do Ministério Público Federal apurar crimes envolvendo condutas homofóbicas, ainda que praticadas por meio da rede mundial de computadores, tendo em vista a inexistência de tratado ou convenção internacional sobre o tema (CF, artigo 109, V)".
Noutras palavras, não era possível atribuir a competência federal para apurar os crimes de homofobia e transfobia por equiparação ao racismo, haja vista que o artigo 109, V, da CRFB impõe a existência de um tratado ou convenção internacional que seja específico ao delimitar as condutas criminosas que serão combatidas pelo Estado signatário — e o Decreto nº 65.810/69 não trata de tais práticas.
Não obstante, em 10 de janeiro de 2022, o Brasil promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, por meio do Decreto nº 10.932, de forma que caiu por terra o argumento encampado pelo MPF.
Tanto que o Enunciado nº 105 da 2ª CCR do MPF foi cancelado em junho deste ano, de modo que, presentes os requisitos necessários, a competência para processamento e julgamento dos crimes de homofobia e transfobia deixa de ser da Justiça Estadual, tornando-se uma das hipóteses de competência da JF.
Esse entendimento já havia sido adotado pelo CNMP no julgamento do Conflito de Atribuições nº 1.00071/2022-61 em 26.04.2022, de relatoria do conselheiro Ângelo Costa:
"[...] III – A decisão do STF na ADO nº 26 e no MI nº 4733 enquadrou a homofobia e a transfobia como expressões do racismo social, puníveis mediante subsunção direta nos tipos penais da Lei nº 7.716/1989.
IV – Inafastável a conclusão de que, não se estando diante de novo tipo penal, mas meramente do enquadramento da conduta dos autos no delito do art. 20 da Lei nº 7.716/1989, mediante o emprego da técnica de interpretação conforme a Constituição da República, configura-se o crime de racismo (dimensão social), que é previsto internacionalmente na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
V – Se o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Constituição, enquadrou as condutas homofóbicas como expressão do racismo, punido no artigo 20 e outros da multicitada lei, não cabe aos aplicadores da norma realizar diferenciação apenas no que se refere à competência para processar e julgar tais crimes, já que, onde há a mesma razão, há o mesmo direito. [...]."
Por fim, vale destacar que, em 14.12.2022, ao julgar conflito de competência suscitado pelo TRF-4 em face do TJ-SC, a 3ª Seção do STJ, por unanimidade, decidiu que, constatado que as falas de suposto cunho homofóbico foram divulgadas pela internet, em perfis abertos da rede social Facebook e da plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube, ambos de abrangência internacional, resta configurada a competência da JF para o processamento e julgamento do feito:
"[...] 1) O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello, deu interpretação conforme à Constituição, 'para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional'.
2) Tendo sido firmado pelo Supremo Tribunal Federal o entendimento de que a homofobia traduz expressão de racismo, compreendido em sua dimensão social, caberá a casos de homofobia o tratamento legal conferido ao crime de racismo.
3) No caso, os fatos narrados pelo Ministério Público estadual indicam que a conduta do Investigado não se restringiu a uma pessoa determinada, ainda que tenha feito menção a ato atribuído a um professor da rede pública, mas diz respeito a uma coletividade de pessoas.
4) Demonstrado que as falas de suposto cunho homofóbico foram divulgadas pela internet, em perfis abertos da rede social Facebook e da plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube, ambos de abrangência internacional, está configurada a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento do feito. [...]."
(CC nº 191.970/RS, relatora ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/12/2022, DJe de 19/12/2022).
Destarte, fica claro que, ao contrário do que era entendido até pouco tempo pelo MPF, é possível, sim, atribuir a competência federal para apurar os crimes de homofobia e transfobia por equiparação ao racismo, nos moldes do artigo 109, V, da CRFB, e com fundamento I) na promulgação da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, por meio do Decreto nº 10.932/2022; II) nos recentes julgados do STJ, especialmente o CC nº 191.970/RS; III) nas teses fixadas pelo STF na ADO nº 26/DF e no MI nº 4.733/DF; e IV) na própria mudança de entendimento do Ministério Público, consubstanciada no cancelamento do Enunciado nº 105 da 2ª CCR do MPF e no julgamento mencionado ocorrido no CNMP.
Com informações: assessoria da imprensa.