Fragmentos de um diário inexistente (V)
Publicado: 06/07/2014, 00:28
Davos, Suíça, Janeiro 1999.
Depois de um dia extenuante no World Economic Forum, recebo um recado no hotel. Lorde Menuhin – que também está em Davos para uma série de conferências – deseja conversar comigo.
Minha primeira reação é de incredulidade: “Lord Menuhin? O mais importante músico erudito deste século? Talvez ele tenha me confundido com outra pessoa.”
Retorno a ligação, o próprio Menuhin atende ao telefone. Sou convidado a ir a seu concerto; no final, ele estende um livro meu, que lhe tinha sido dado por sua secretária (para minha surpresa, não é O Alquimista), e que tinha provocado sua curiosidade por meu trabalho.
Nos três dias que seguem – até o final do Fórum – tenho o raro privilégio de conversar, almoçar, conviver com ele. Discutimos um grande projeto para o final de 1999, com o objetivo de pisar no próximo milênio com esperança, mas também com plena consciência dos erros do passado.
Menos de um mês depois vem o concerto em Berlim, o fulminante ataque do coração, e a morte deste jovem de 83 anos, cujo violino Eistein teve o privilégio de ouvir, que foi o primeiro judeu a tocar na Alemanha pós-guerra, porque entendeu que a única saída para o mundo era tentar superar as feridas com alegria e entusiasmo. Lord Menuhin será lembrado não apenas como um dos maiores músicos da humanidade, mas também como alguém profundamente comprometido com o ser humano, a justiça social, a dignidade que tanto falta as pessoas que hoje tentam controlar nosso destino.
Num destes almoços em Davos, Lord Menuhin colocou-me frente a frente com um brilhante cientista francês e uma (nem tão brilhante) terapeuta americana. O cientista era convictamente ateu, o que provocou uma discussão apaixonada sobre a existência de Deus – a qual Menuhin, um homem religioso, assistia com um sorriso. No final, quando os ânimos serenaram, Lord Menuhin comentou da necessidade de sempre lutar contra as injustiças, mas sempre mantendo o respeito pelas opiniões opostas. E todos nós ouvimos uma deliciosa história judaica:
“Quando estava em seu leito de morte, Jacob chamou a mulher Sarah”:
- Querida Sarah, quero fazer meu testamento. Vou deixar para meu primogênito Abraão metade da minha herança. Afinal de contas, ele é um homem de fé.
- Não faça isso, Jacob! Abraão não precisa de tanto dinheiro, já tem seu emprego, sua firma, já tem até mesmo fé em nossa religião. Deixa para Isaac, que está vivendo muitos conflitos existenciais sobre a existência de Deus, e ainda não se ajeitou na vida.
- Está bem, deixarei para Isaac. E Abraão ficará com minhas ações.
- Já disse meu adorado Jacob, que Abraão não precisa de nada! Eu fico com as ações, e poderei prover qualquer um de nossos filhos, se algum dia necessitarem.
- Você tem razão, Sarah. Vamos então as nossas propriedades em Israel. Acho que devo deixar para Deborah.
- Deborah? Você enlouqueceu Jacob. Ela já tem propriedades em Israel, você quer que se transforme em uma mulher de negócios, e termine arruinando seu casamento? Acho que nossa filha Michele precisa muito mais de ajuda!
Jacob, reunindo suas últimas energias, levantou-se indignado:
- Minha querida Sarah, você tem sido uma excelente esposa, uma excelente mãe, e sei que quer o melhor para cada um de seus filhos. Mas por favor, respeite meus pontos de vista! Afinal de contas, quem é que está morrendo? É você ou sou eu?