'Em nome do céu' tem Andrew Garfield bem, mas série como um todo deixa a desejar
Ator adiciona nuance às dúvidas do protagonista, mas falta à série a mesma destreza na construção do seu mistério
Publicado: 15/08/2022, 15:59
A notícia de um duplo assassinato que vitimou uma mãe e seu bebê de 15 meses só poderia ser recebida com choque, sobretudo em um subúrbio americano pacato, no Estado de Utah. Mas, por mais cruéis que sejam os detalhes de tal crime, nada soa mais assustador aos cidadãos do que a simples ideia de que um membro daquela comunidade, e não um forasteiro, foi o autor de tamanha atrocidade. Entre tantos homens e mulheres de fé, devotos dos dogmas de Joseph Smith e da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, aceitar que há ali um criminoso parece absurdo. Imagine, então, conceber que uma interpretação extremista dos valores mórmons motivou aquela barbárie.
Na minissérie de true crime 'Em Nome do Céu' (Under the Banner of Heaven), esse conflito moral é tão central que se sobrepõe ao mistério típico. Não se trata de quem matou, e sim por quê. Nesse sentido, a investigação é menos forense, e mais semântica, analisando em última instância o que é fé e o que é a boa e velha manutenção de poder. É um debate delicado e que, por isso, facilmente poderia afastar o espectador, seja por ele ser fiel, seja por desconhecer os pormenores da religião. Espertamente, porém, o criador Dustin Lance Black contorna essa possível resistência dando um passo além do livro de Jon Krakauer que adaptou para a TV. Aqui, ele personifica todas estas questões na figura do detetive Pyre (Andrew Garfield), um mórmon fiel — e fictício — que, incumbido de investigar o caso, se vê questionando suas próprias crenças.
A fé do detetive Pyre é seu trunfo e sua maldição: ao mesmo tempo que lhe é útil para achar a melhor maneira de conseguir a colaboração dos seus suspeitos, é também a razão de todo seu desconforto. Afinal, ele foi ensinado a deixar todas as suas dúvidas na prateleira e a responder primeiro às leis de Deus, e depois às dos homens, ou seja, dois comportamentos diametralmente contrários à sua profissão. Tratando-se de um personagem criado para a série, é bastante claro que ele é uma versão potencializada do incômodo gerado pelo caso.
Os paralelos entre a religião e o crime
'Em Nome do Céu' não economiza tempo para abordar sua radicalização. Adicionando mais uma linha temporal a uma trama já bastante densa, a série segue os moldes da obra original e estabelece paralelos entre a origem da religião Mórmon e os assassinatos. Conceitualmente, é uma sacada perspicaz, já que não apenas dá conta de situar o espectador menos familiarizado sobre as especificidades desta comunidade, como frisa como certos hábitos nocivos sobrevivem ao tempo. Nesse sentido, é como se a minissérie estivesse alertando para o que viria a acontecer nos EUA meses depois do seu lançamento: uma interpretação datada e propositalmente turva sendo usada para justificar o cerceamento de direitos das mulheres — no caso de 2022, a revogação do direito ao aborto.
Entretanto, a proposta funciona de fato só até certo ponto. Com uma qualidade de produção nitidamente inferior, a dramatização de eventos históricos aos poucos se torna cansativa e repetitiva, e perde seu propósito. No fundo, não é preciso ir tão longe para entender a razão para que aquela mulher e sua filha tenham virado vítimas, muito menos por que os Laffertys foram capazes de tamanha brutalidade. São questões que ultrapassam essa ou aquela crença e, portanto, dispensam tanto didatismo. Infelizmente, mais do que deixar o caminhar da trama mais lento, 'Em Nome do Céu' sacrifica ainda a relevância da sua vítima e seu papel, saudável e essencial, dentro daquela comunidade. Uma pena, porque Daisy Edgar-Jones faz um ótimo trabalho.
Entre acertos e deslizes, o saldo é positivo. A série entrega uma experiência complexa e sensível, que te deixa pensando muito depois da série acabar.