Debates
Anvisa adia revisão do marco regulatório e breca futuro da cannabis medicinal no Brasil
Da Redação | 12 de dezembro de 2025 - 01:47
Por Claudia de Lucca Mano
A revisão da RDC 327/2019 chegou hoje ao seu momento de inflexão. Após meses de debates técnicos, contribuições da consulta pública e intensas reuniões internas, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) analisaria, e acabou não deliberando, a nova minuta divulgada em 3 de dezembro, que substituiu por completo a proposta construída no primeiro semestre para o avanço da cannabis medicinal no país. O diretor Thiago de Moraes Vicente, recém-empossado, pediu vistas e retirou o tema da pauta, suspendendo a votação. Mesmo assim, a discussão conduzida expôs com clareza a direção que a agência pretende tomar.
Criada como marco transitório, a RDC 327/2019 instituiu a autorização sanitária como etapa intermediária entre a ausência de regulação e o registro de medicamento. A norma permitiu a entrada de produtos no mercado com critérios mínimos de qualidade e rastreabilidade, sem exigir comprovação de eficácia, inviável à época devido à falta de estudos clínicos robustos. Era uma espécie de berçário regulatório: o setor poderia amadurecer evidências e, num segundo momento, migrar ao regime de registro. Já a manipulação permaneceu totalmente proibida, impulsionando forte movimento de judicialização.
Na sessão da última quarta, dois movimentos simultâneos dominaram o debate: o reforço da proibição do magistral e a preocupação declarada da agência em revisar profundamente a RDC 660/2022, que autoriza a importação direta por pacientes. Esses dois eixos — vedação da manipulação e restrição da importação — passaram a orientar a reconfiguração da RDC 327/2019.
A intervenção da ProGenéricos destacou um dado incômodo: apenas uma parcela pequena dos produtos hoje regularizados usa insumos de grau farmacêutico. Soma-se a isso o mercado altamente informal de derivados de cannabis no país, majoritariamente abastecido pela importação direta, que ocorre com receita médica, mas sem avaliação prévia da Anvisa, e pelas associações de pacientes que cultivam e extraem óleo sob risco permanente de enquadramento criminal. O quadro reforça o diagnóstico há anos sustentado pelo setor magistral: o problema central não está nas farmácias.
O Brasil opera, hoje, com três níveis totalmente dissonantes de controle sanitário. De um lado, produtos industrializados com autorização sanitária. No extremo oposto, produtos que não passam por qualquer avaliação da Anvisa, como os importados via RDC 660/2022 ou os óleos produzidos por associações. Entre esses polos, as farmácias de manipulação ocupam justamente o espaço intermediário: são fiscalizadas, licenciadas e auditadas pela própria agência, mas, paradoxalmente, impedidas de existir como categoria terapêutica.
A regulação que penaliza o magistral sem enfrentar a raiz do problema só amplia a assimetria. Produtos sob controle frágil, principalmente os importados sem avaliação prévia, seguem circulando com muito menos supervisão do que haveria dentro de um modelo magistral regulado.
Ao justificar a manutenção da proibição, o diretor Romison Rodrigues Mota alegou ausência de reprodutibilidade lote a lote, falta de farmacovigilância estruturada, inexistência de comprovação de eficácia e supostas deficiências nos sistemas de qualidade das farmácias. Mas o argumento decisivo não foi técnico-sanitário: foi a judicialização. Segundo o relator, cerca de 8% das ações teriam decisões desfavoráveis à Anvisa, percentual que, contudo, parece considerar apenas a Justiça Federal.
Levantamento próprio, que fizemos em 2023, identificou quase 100 decisões favoráveis ao magistral apenas no Tribunal de Justiça de São Paulo e que não foram incluídas na estatística apresentada. A judicialização é muito mais ampla do que o índice exibido.
Resta a pergunta essencial: a Anvisa está regulando a cannabis medicinal a partir de risco sanitário ou para reduzir a pressão judicial?
Se a preocupação é sanitária, o foco deveria ser a qualidade dos insumos, a rastreabilidade da cadeia e a fiscalização dos fornecedores, não a proibição de uma atividade que a própria agência tem competência para regular. É incoerente vedar a manipulação por “falta de qualidade das farmácias” quando essas mesmas farmácias manipulam substâncias de risco muito maior, como morfina e hormônios.
Além disso, a qualidade dos insumos que entram no país, usados tanto pela indústria quanto pela manipulação, já é fiscalizada pela própria Anvisa. Apontar fragilidade sistêmica significa, em última instância, admitir falha do próprio sistema nacional de vigilância sanitária.
E é igualmente contraditório criticar as farmácias enquanto se permite a circulação de produtos com controles muito mais frágeis, como os importados via RDC 660/2022. Se a prioridade é proteger o paciente, o critério deveria ser uniformidade de fiscalização, e não a expansão de proibições.
O que se viu na Diretoria Colegiada não foi apenas um debate técnico. Foi a redefinição do marco regulatório de cannabis medicinal no Brasil. Quando a agência regula prioritariamente para conter judicialização ou sob um “princípio da precaução” mal calibrado, deixa-se de regular para aprimorar o controle sanitário. O eixo da política pública se desloca: sai da análise de risco e entra na proteção de um modelo que já nasceu limitado.
O país corre o risco de consolidar um sistema mais restritivo, menos plural e menos atento às necessidades clínicas reais dos pacientes.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, responsável pelo setor jurídico da Farmacann – Associação para Promoção da Cannabis Medicinal Manipulada/Magistral e do departamento jurídico da Associação Nacional de Magistral de Estéreis - ANME