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Previdência Social, uma bomba com estopim aceso
Da Redação | 04 de outubro de 2024 - 02:33
Por Samuel Hanan
Em 2019, o Brasil fez a Reforma da Previdência, medida
apontada como urgente, na época, porque muitos definiam o regime previdenciário
como uma bomba prestes a explodir. Passados cinco anos apenas, constata-se que
a reforma de 2019 foi parcial. Talvez o resultado tenha sido o politicamente
possível, porém ficou muito aquém das necessidades nacionais.
Agora uma nova reforma se impõe, de forma mais ampla,
incluindo os estados e municípios, além de observar o que determina o estudo
atuarial.
Não há como fugir do problema. Nem adiar a busca de solução.
Hoje, todos os tipos de previdência social no Brasil – Regime Geral da
Previdência Social, servidores da União, de estados e municípios – apresentam
déficits expressivos. Em 2023, esse rombo alcançou R$ 482 bilhões, um valor
preocupante porque equivale a 4,41% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e a
13,4% das receitas tributárias dos três entes federativos (União, Estados e
Municípios). Esmiuçando: são R$ 312 bilhões de déficit do RGPS, mais R$ 110
bilhões do sistema de previdência dos servidores da União (civis e militares) e
ainda R$ 60 bilhões de rombo na previdência dos servidores dos estados e
municípios.
Merece destaque o fato de que, enquanto o déficit do RGPS
corresponde a cerca de R$ 9.400,00 per capita/ano, o dos servidores civis da
União chega a R$ 69.000,00 per capita/ano. Na liderança do rombo está o déficit
da previdência dos militares, que atinge R$ 150.000,00 per capita/ano.
Embora o Regime Geral da Previdência tenha o maior número de
beneficiados, seu déficit per capita é menor por uma razão simples: 70% dos 33
milhões de aposentados e pensionistas recebem remuneração igual ao piso
salarial estabelecido pela legislação, ou seja, apenas 1 salário-mínimo/mês (R$
1.412,00). Os outros 30% dos aposentados recebem, em média, cerca de R$
2.600,00/mês (1,85 salário-mínimo). Já o valor médio global do RGPS, em 2023,
foi de apenas R$ 1.771,28/mês (1,36 salário-mínimo). É fácil constatar que para
a maioria dos brasileiros não há aposentadorias generosas.
Entre as principais razões do gigantesco déficit da
Previdência Social está o fenômeno de criação da figura jurídica e empresarial
do MEI (Micro Empreendedor Individual), que entrou em vigor em 2009 para
formalizar e dar segurança jurídica a trabalhadores autônomos que não tinham
nenhum amparo legal nem contavam com assistência previdenciária. Na prática, o
objetivo era incentivar o empreendedorismo.
Ocorre que o Brasil é um dos campeões em produção de leis,
medidas provisórias, decretos, instruções normativas e muitos outros atos
jurídicos elaborados sem maiores cuidados e tecnicidade. Isso faz com que
existam sempre brechas jurídicas para burlar o seu fiel cumprimento, algo
antiético, porém legal. Foi o que aconteceu com o regime MEI. Segundo estudo
elaborado pela economista Bruna Alvarez, da Fundação Getúlio Vargas, 53% dos
trabalhadores que optaram pelo regime MEI até 2019 não atuavam como empreendedores,
mas sim eram empregados assalariados de outras empresas. Ou seja, foram
estimulados (ou forçados) a se transformar em microempreendedores individuais,
tudo como forma de o empregador escapar dos elevados encargos e passivos
trabalhistas. É o fenômeno conhecido como “pejotização” – a transformação da
pessoa física em pessoa jurídica -, que vem caracterizando as relações
trabalhistas no país.
Considerando-se a contribuição mensal de uma MEI, de 5% do
salário-mínimo), durante 13 meses (incluindo “13º salário”), tem-se a
contribuição anual de R$ 917,80 por ano (valores de 2024). Como no Brasil há
15,7 milhões de MEIs (dado de 2023), o recolhimento total por ano é de R$ 14,41
bilhões. Caso o MEI queira pagar a contribuição de INSS complementar, para
garantir os mesmos direitos dos demais contribuintes, desembolsará mais R$
155,32 por mês, ou R$ 2.019,00 por ano.
Já um trabalhador registrado pela CLT com salário de 1
salário-mínimo, contribui hoje com 7,5% de R$ 105,90 por mês, ou R$ 1.376,70
anuais. Consideremos a contribuição do empregador variável, mais o mínimo de
20% da remuneração do empregado, de R$ 3.671,20 por ano, temos o total de R$
5.047,90. Subtraindo-se desse valor o montante de contribuição do MEI, resulta
R$ 4.130,10. Esta é a perda de arrecadação da Previdência por cada pessoa que
migrou do emprego formal para uma MEI.
Como 53% das 15,70 milhões de MEIs existentes em 2023 (ou
seja, 8,32 milhões delas) nada têm a ver com empreendedorismo, utilizando esse
regime como mero expediente para fugir da elevada carga tributária incidente
sobre cada empregado de uma empresa privada, a perda da arrecadação do RGPS
pode ser estimada em R$ 34,36 bilhões no ano. Somando-se aos R$ 16,34 bilhões
referentes ao vínculo do salário-mínimo, o impacto negativo na arrecadação do
FGTS chega a R$ 50,70 bilhões.
Há ainda outros aspectos que comprometem o sistema. Um deles
está no critério da idade para concessão de aposentadoria. Os homens – cuja
expectativa de vida é de 72 anos -, podem se aposentar aos 65 anos de idade. Já
as mulheres, que possuem expectativa de vida maior (79 anos), podem requerer a
aposentadoria com 62 anos. Ou seja, embora as mulheres tenham maior expectativa
de vida (7 anos a mais que os indivíduos do sexo masculino), podem se aposentar
com 3 anos a menos que os homens. A equiparação de idades para a aposentadoria
seria, portanto, o caminho correto. O problema é que seu custo político é alto
demais, prejudicando o avanço dessa questão.
Também é preciso levar em conta fatores como o
envelhecimento da população e a queda na taxa de crescimento populacional, de
1,7% para 0,5% ao ano.
Não se pode perder de vista, ainda, o excesso de gastos da
gestão e administração do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e de
outros órgãos vinculados ao RGPS, seja com as cúpulas (Brasília e estados),
seja com privilégios, desperdícios ou fraudes frequentes e de grande monta. Há,
sem dúvida, espaço para cortes expressivos nessas despesas.
Igualmente, é necessária especial atenção com as
desonerações concedidas para alguns setores econômicos, estimadas pelo governo
entre R$ 15 e R$ 20 bilhões/ano. Cabe um exame detalhado para avaliação da
procedência desses benefícios e uma avaliação criteriosa sobre a possibilidade
de redução ou exclusão das desonerações.
Também merecem análise os gastos com os Benefícios de
Prestação Continuada (BCP), que hoje englobam 5,8 milhões de pessoas, com
remuneração igual ao piso salarial de um salário-mínimo/mês (R$ 1.412,00). Esse
benefício é assegurado pela Lei Orgânica de Assistência Social (L.O.A.S) que,
por sua vez, tem garantia constitucional. O programa é direcionado aos idosos
com mais de 65 anos, deficientes físicos e aos vulneráveis. A elegibilidade dos
beneficiários está atrelada ao cumprimento de vários critérios, como por
exemplo, a idade, condição da deficiência, renda familiar e avaliação médica e
social. Não é condição para receber o benefício qualquer contribuição prévia ao
INSS e, por esta razão, a principal fonte de recursos é o orçamento da União.
O custo do programa é de R$ 106,47 bilhões por ano
(considerando-se 13 parcelas mensais), o equivalente a 0,93% a 0,96% do PIB. Já
o efeito do vínculo do benefício ao salário-mínimo representa R$ 2,78 bilhões
por ano.
A soma do custo dos vínculos do salário-mínimo às
aposentadorias, pensões e ao BPC; das MEIs em número extraordinário e das
desonerações de alguns setores econômicos chega a valores entre R$ 68,48 e R$
73,48 bilhões. É um número enorme que fica ainda maior se forem considerados os
valores das fraudes previdenciárias, programa BPC e os custos da gestão do
RGPS, das aposentadorias diferentes entre homens e mulheres, e da aposentadoria
rural, que também reclama auditagem profunda.
O problema do déficit da Previdência – envolvendo civis,
militares e BPC – é de extrema gravidade. A questão é complexa, multifacetada e
extremamente sensível, vez que as mudanças que vierem a ser feitas certamente
atingirão, mais uma vez, os menos favorecidos: idosos, pessoas de baixa renda –
que representam mais de 70% dos aposentados e pensionistas -, mulheres e
cidadãos com deficiência.
Como governar não é retirar direitos e conquistas da grande
maioria sofrida da população a fim de assegurar (e se possível, ampliar) a
enorme gama de privilégios de uma casta da sociedade nacional - os donos do
poder -, a gravidade do problema previdenciário obriga o exame em conjunto dos
gastos com funcionalismo público dos três entes federativos porque o Brasil
gasta, com isso, 12,8% do PIB, muito mais do que a média (9,8% do PIB) dos 37
países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Esses 3% a mais correspondem a nada menos que R$ 327 bilhões/ano.
É necessário levar em conta, ainda, que estudos oficiais do
governo e de outras entidades, com base no cálculo atuarial, estimam o déficit
previdenciário em mais de R$ 6 trilhões, o equivalente a 57% do PIB. Um valor
astronômico, que supera 67% da dívida pública, hoje entre R$ 8,7 e R$ 9,0
trilhões.
A bomba, portanto, não foi desarmada com a reforma de 2019.
Continua ameaçadora e prestes a causar maiores estragos entre os aposentados e
pensionistas porque a cogitada desvinculação do salário-mínimo à aposentadoria
vai retirar mensalmente R$ 36,71 desses beneficiados, valor que seguramente
lhes fará muita falta nessa fase da vida.
Qualquer mudança a ser feita exigirá muita tecnicidade,
transparência absoluta e, acima de tudo, sensibilidade para enxergar que é
chegada a hora da redução de privilégios, em busca do equilíbrio para se evitar
a falência do sistema previdenciário, que acontecerá mais cedo ou mais tarde
caso não sejam adotadas as providências necessárias e inadiáveis.
Para isso é necessário coragem e o aprendizado de uma lição dada pelo professor, economista e ex-ministro Mário Henrique Simonsen (1935-1997), para quem a diferença entre o fracasso e o sucesso de um gestor público está na simples troca de uma vogal: prever (estudos e planejamento), em vez de prover (UTI e bombeiro apagando incêndio).
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de
macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi
vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à
deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br