Debates
Pau que nasce torto morre torto
Da Redação | 16 de fevereiro de 2024 - 01:17

Por Mário Sérgio de Melo
“Errei, quero uma chance pra recomeçar/ dizem que pau que
nasce torto morre torto/ eu não sou pau, posso me regenerar” são versos da linda
canção “Fraqueza”, sucesso de 1973 de Antônio Carlos e Jocafi. Nela, os
compositores contestam poeticamente o ditado popular que afirma que o que
começa mal nunca vai se consertar: o “pau que nasce torto morre torto”. Ou, traduzindo,
que uma pessoa criada num meio sociocultural com certos conceitos, convicções e
atitudes nunca vá ser capaz de modificá-los, ainda que eles se mostrem daninhos.
O ditado popular tem suas razões de existir: o ser humano
tem notória dificuldade de admitir erros, e, mesmo que os reconheça, tem imensa
dificuldade para mudar! E como erramos! Atualmente, os erros espontâneos, fruto
de acidentes, equívocos ou do desconhecimento, são em número e importância
muito menor que os erros plantados, aqueles para os quais somos induzidos, pela
manipulação e condicionamento.
O ser humano tem muita dificuldade de reconhecer o quanto
ainda é um animal irracional, passível de ser adestrado, tal como um cão. Assim
mostrou Pavlov com os estudos sobre o reflexo condicionado, este depois
comprovado também no Homo sapiens. Mentiras repetidas podem convencer que são
verdades. O erro da mentira passa a guiar o comportamento do indivíduo
ludibriado pelo condicionamento. Ele reage ferozmente, com todo seu instinto
animal, se ousam alertá-lo de seu erro.
Estamos naquela idade da adolescência da humanidade, em que
nossa amoral racionalidade ultrapassou a compreensão, o bom senso e a ética. As
engenhosas tecnologias para a manipulação e o condicionamento, seja para o
consumo, a crença religiosa, as convicções políticas, a moral e valores, são
muito mais poderosas que o discernimento humano. Não temos mais segurança de
sabermos distinguir a mentira da verdade. Nunca antes as mentiras induziram
tantos ao erro. A despeito de tudo o que nossa inteligência já nos comprovou,
ainda são muitos os terraplanistas, os antivacinas, os céticos do aquecimento
global, os que acreditam num deus dinheirista e segregacionista, ou que o especulativo
mercado é capaz de uma justa gestão econômica, e que, entre as raças e culturas,
há as superiores e as inferiores.
E, diante de evidências do equívoco e do erro, como a
humanidade tem reagido? Diálogos francos em busca da compreensão e do acerto?
Ao contrário! Reconhecer o erro seria suposto sinal de fraqueza, ignorância,
inferioridade. Radicalizamos e blindamos a crença no erro. A convicção no erro
passa a fazer parte da essência identitária do indivíduo, e mesmo de
comunidades inteiras. Convicções acirradas, ainda que completamente
equivocadas, enraízam-se, conduzem à segregação, ao ódio, à guerra.
Talvez a humanidade esteja só precisando ouvir mais canções, como aquelas de cinquenta anos atrás. Como as tais que, embora com outras palavras, diziam algo como: “Errei, quero uma chance pra recomeçar/ dizem que pau que nasce torto morre torto/ eu não sou pau, posso me regenerar”.
Mário Sérgio de Melo é Geólogo, professor aposentado do
Departamento de Geociências da UEPG