Manipulação dos preços de valores mobiliários: do spoofing
Nathália Marques discorre sobre o assunto
Publicado: 16/10/2023, 16:37
A prática irregular de manipulação de preços de valores mobiliários no âmbito do mercado de capitais, além de caracterizar ilícito administrativo de natureza grave, com fulcro no artigo 2º, inciso II combinado com artigos 3º e 4º da Resolução CVM nº 62/22, também imputa responsabilidade na esfera penal por força do artigo 27-C da Lei nº 6.385/76, contido no capítulo dos crimes contra o mercado de capitais, em que prevê pena de até oito anos de reclusão cumulada com multa de até três vezes o montante da vantagem auferida na operação ilícita.
No contexto administrativo, entretanto, diferente do que prevê a esfera penal, o tipo não se limita à necessidade de obtenção de ganhos econômicos ou de ocasionar prejuízos a outrem. Portanto, com fundamento na Resolução CVM nº 62/22, a manipulação dos preços de valores mobiliários é infração de mera conduta, de modo que "basta a negociação de determinado ativo com a intenção de alterar artificialmente o mercado em relação a sua oferta e/ou demanda, [induzindo] terceiros à negociação de valores mobiliários".
Dito isto, a manipulação de preços compreende um conjunto de práticas amplamente conhecidas pelo mercado, que têm por objetivo ludibriar intencionalmente os investidores por meio de operações que engendram ofertas, demandas ou condições artificiais buscando, por resultado, lucrar às custas de outros comitentes do mercado que, por sua vez, influenciados por informações inexatas, compram e/ou vendem ativos em circunstâncias não condizentes ao real contexto econômico daquele valor mobiliário ao tempo da prática fraudulenta. Resta mencionar, entretanto, assim como dito anteriormente, que a simples manipulação dos preços de valores mobiliários já configura, por si só, infração administrativa de competência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Uma dentre estas práticas consiste no spoofing, que, traduzido do inglês, significa enganar ou falsificar. Em resumo, a operação consiste na criação de liquidez aparente por meio da inserção, em um intervalo de tempo muito curto, de ordens artificiais de compra ou de venda em lotes expressivos de ações, com o objetivo de pressionar um dos lados do livro de ofertas e, com isso, atrair contrapartes, movendo, portanto, os preços em um sentido que venha a promover a execução das ofertas posicionadas na ponta oposta do livro, conforme preço e quantidade pretendidos pelo comitente manipulador.
A BSM Supervisão de Mercados, uma associação civil que atua como autorreguladora das negociações realizadas no âmbito dos mercados organizados administrados pela B3, em um de seus relatórios de compartilhamento de alertas, definiu spoofing como o "posicionamento [inicial] em um dos lados do livro e posterior inserção de oferta expressiva sem propósito de fechar negócio".
Portanto, o principal arranjo no qual o spoofing se insere é: (1) posicionamento de uma ou várias ofertas premeditadas em um dos lados do livro de ofertas; (2) registro de uma oferta expressiva no lado oposto do livro ao que foram registradas as ofertas premeditadas, com o propósito de exercer pressão compradora ou vendedora e influenciar a decisão de outros comitentes; (3) reação do mercado à oferta expressiva e consequentemente a execução das ofertas premeditadas; e (4) cancelamento da oferta expressiva pelo comitente infrator.
Tomando isto como base, a Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários da Comissão de Valores Mobiliários (SMI), no âmbito do Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.010831/2019-17, identificou uma variação da operação de spoofing, que seguiria a ordem de: (1) inserção de uma oferta expressiva com o propósito de exercer pressão compradora ou vendedora ao passo que influenciaria a decisão de outros investidores sob o plano de fundo artificial de uma falsa liquidez do ativo; (2) posteriormente se observando a reação do mercado à oferta expressiva; (3) seguida de uma segunda inserção de oferta, desta vez na ponta oposta do livro, que agredisse a oferta expressiva e consequentemente executasse os negócios trazidos pela criação de falsa liquidez que a primeira oferta ocasionou; restando, por último (4) o cancelamento da oferta expressiva feita no início do ciclo.
Em benefício da clareza e tomando como base um caso prático hipotético, o spoofing — em seu arranjo mais comum — ocorreria num cenário em que o comitente registrasse, por exemplo, uma oferta de venda de 1.000 ações ao preço médio de negociação do ativo em bolsa naquele momento, R$ 0,15. Posteriormente, seria inserida uma oferta de compra manipuladora com volume expressivo e referente a 10 mil ações a um preço abaixo do negociado em bolsa pelo mesmo ativo naquele momento, digamos que R$ 0,14. Nesse momento, o mercado reage positivamente àquele ativo, dada a falsa liquidez e demanda que a oferta manipuladora gerou, uma vez que, em resumo, quando se tem ofertas de venda menores em quantidade e maiores ou iguais em preço do que se tem ofertas de compra, o mercado entende que aquele ativo é requisitado, eacompanhará uma valorização em potencial. Nesse contexto, dada a reação dos investidores à manobra intencional, o comitente cancela as ofertas manipuladoras, retornando o ativo ao seu status quo quanto à demanda do mercado, no entanto, desta vez, tendo o comitente manipulador lucrado ilicitamente com as negociações que foram executadas no curso da operação.
Vale mencionar que a operação de spoofing tem seu ciclo integralmente concluído em poucos minutos ou segundos, dependendo do porte da companhia emissora do valor mobiliário manipulado e a liquidez do ativo negociado em bolsa. Revela-se, portanto, como prática ilícita geradora de enormes ganhos econômicos em um curto período de tempo.
De maneira concisa, o benefício auferido pelo comitente neste tipo de operação é originado sobretudo da diferença de spread causado – equivalente ao "lucro" da operação. Assim sendo, o cálculo deste ganho consiste na multiplicação da quantidade de ações vendidas (1.000 ações, conforme o exemplo apresentado acima) pela diferença de spread identificada em relação ao momento anterior ao registro da oferta expressiva (ou seja, R$ 0,15 – R$ 0,14 = R$ 0,01). Logo, no exemplo analisado, o comitente teria auferido um ganho de R$ 10,00 (1.000 x R$ 0,01).
Diferente do que se pensa, a operação de spoofing não é uma prática recente, muito pelo contrário, o ilícito de manipulação de preços sempre ocorreu no mercado bursátil, mas devido ao avanço da tecnologia e dos meios de acompanhamento de mercado, a identificação desta prática pelos órgãos competentes, se tornou mais eficiente no que se refere a análise de movimentações quantitativamente atípicas de oferta e volume, além dos comportamentos abruptos que, no caso do spoofing, abarca o cancelamento da oferta artificial segundos após a execução da oferta pretendida.
Os mais afetados por operações de spoofing são os investidores praticantes de day trade, já que "[a]s informações disponíveis no livro de ofertas são um elemento de extrema relevância para a decisão de investimento de diversos participantes do mercado, nomeadamente daqueles que negociam ações buscando obter ganhos com variações na cotação no curto prazo, incluindo os negociadores de alta frequência, que hoje respondem por parte significativa do volume negociado, e, sobretudo, das ofertas colocadas". Resta claro, entretanto, que qualquer comitente operante no mercado pode ser vítima de operações de spoofing.
Nos últimos tempos, tem se observado relevante incremento na quantidade de Processos Administrativos Sancionadores julgados pela Comissão de Valores Mobiliários envolvendo casos de spoofing. A posição da autarquia tem seguido parâmetros bastante rígidos, dado o caráter grave da infração por força da Resolução CVM nº 62/22.
O caso mais recente julgado pelo Colegiado da CVM tratou de duas modalidades de manipulação de preços combinadas, sendo elas o spoofing e a operação de mesmo comitente (OMC) — esta última não tratada neste trabalho. O julgamento resultou na condenação, por unanimidade, à multa pecuniária de quase R$ 760 mil para cada acusado. Importante mencionar que no termo de acusação a área técnica da CVM imputou as práticas fraudulentas a duas pessoas físicas, sendo uma delas o executor de fato das ordens de compra/venda e o outro o comitente nominalmente beneficiado pelas práticas irregulares.
O Colegiado entendeu naquele caso, assim como nos últimos processos administrativos sancionadores com o mesmo objeto, com fulcro na Lei nº 6.385/1976, que as multas deveriam ser calculadas com base no benefício auferido ilicitamente pelos acusados, tendo sido este atualizado pelo IPCA (contado o prazo de correção monetária desde a data da última operação irregular dentre as 3.786 operações executadas no lapso temporal analisado no termo de acusação do PAS) e multiplicado por duas vezes a vantagem econômica total das operações. Desse modo, a penalidade foi repartida entre ambos os acusados que, conforme consta nos autos, agiram em coautoria. Isso porque, a acusação declarou ser impossível precisar como ocorreu a divisão dos lucros obtidos entre cada acusado. Por fim, o colegiado propôs que o resultado do julgamento fosse remetido ao Ministério Público Federal para que a conclusão dada pela autarquia fosse objeto complementar no processo que tramita também na esfera penal, conforme artigo 12 da Lei 6.385/76.
Por todo o exposto, o que se espera é que novos meios para identificação de práticas irregulares no mercado de capitais sejam implementados, como medidas necessárias ao bom funcionamento do mercado. O papel do regulador do mercado de valores mobiliários, no caso do Brasil a CVM, é da maior relevância, pois busca zelar os princípios norteadores do mercado de capitais, tais quais a apreciação do interesse público, a promoção da confiança entre os investidores e a bolsa brasileira, a garantia de eficiência do mercado, o estímulo à competitividade, a defesa do livre mercado e a proteção ao investidor. Somados, estes princípios devem imperiosamente preservar a credibilidade do mercado brasileiro permitindo a sua contínua evolução frente outras jurisdições.
Com informações: assessoria da imprensa.