50 anos do Golpe de 1964: sentidos da descomemoração | aRede
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50 anos do Golpe de 1964: sentidos da descomemoração

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Gabriel Sartini

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Prof. Dr. Robson Laverdi

Professor Associado do Depto. de História/UEPG

Professor do Mestrado em História, Cultura e Identidades/UEPG

“Brasileiro tem memória curta!”. “Brasileiro não tem memória!”. Quantas e quantas vezes ouvimos tais sentenças no dia a dia, muitas delas ao ponto de acreditar que são potencialmente verdadeiras. É claro que há pessoas que lembram mais, outras menos; outras que silenciam mais e outras que esquecem menos. A memória é um processo individual e subjetivo, todavia circunscrito pela vida social histórica. Ao se acreditar nestas sentenças fazemos mais do que acreditar em nossa sofrível situação, pois as tornamos verdades que se inscrevem em nossa vida. É preciso ir um pouco além e compreender que são as dinâmicas e os conflitos vividos na dura realidade cotidiana que tornam estas sentenças factíveis e justificáveis. Até porque, quanto mais silêncios e esquecimentos, mais suscetíveis ficamos à cultura autoritária da memória única.

Vivemos hoje um importante momento na sociedade brasileira de parada para lembrar e refletir sobre os últimos 50 anos desde o Golpe de 1964. E talvez seja importante sublinhar que não estamos apenas recordando do fatídico acontecimento em si, mas de todo o processo que perdurou por pouco mais de duas décadasde nossa jovem história republicana, circunscrevendo-se hoje o modo como moldou nossa vida social, econômica, política e cultural numa teia densa e complexa de sentidos autoritários que permanecem internalizados e atuantes em nosso cotidiano. Na medida em que o Estado se colocou como autorizado a usar da violência, do banimento, da repressão, da tortura, da censura, da opressão, da perseguição e outras formas terríveis de omissão democrática, a retomada do marco memorial de 1964 representa mais do que imaginamos para nossa vida presente e futura. Noutras palavras, não estamos falando apenas do passado, mas potencialmente do modo como queremos dar sentido ao futuro, para que ele seja diferente do que vivemos, para que nos garanta a liberdade de ser e existir numa sociedade de cidadãos.

Em sentido amplo, tanto não é verdade nossa rasa memória, que nos últimos meses vimos assistindo participação expressiva e qualificada de diversos movimentos e organizações sociais, entidades e instituições, articulados ao tema da rememoração do Golpe de 1964. É bem verdade também que a criação em 2012 da Comissão Nacional da Verdade, que somada a muitos outros esforços, têm colaborado na publicização de publicações, noticias, depoimentos, documentos, investigações e rememorações. Toda esta produção e circulação de memórias tornam vívida se compartilháveis reflexões históricas sobre o nosso passado. Toda esta experiência memorativa comunicável, mais do que constatar as agruras autoritárias de nosso passado recente, reafirma o poder transformador eivado pelo direito à memória, e com ele as dimensões inclusivas e participativas do social no mundo das decisões políticas.

Nesta direção, é preciso atenção a uma noção emergente no social e que circula pelo Brasil de norte a sul: a descomemoração. Seria inútil pensar que este vocábulo é apenas e tão somente um trocadilho de efeitos. Este termo é uma síntese política alternativa extraordinária que está muito além da linguagem em si, pois é a resposta semântica reivindicatória ao direito à memória como resposta contagiante a qualquer intenção de reivindicar a efeméride dos 50 anos de Golpe Militar. Neste sentido, descomemoração é a contra-efeméride, é o marco da memória plural e irrestrita que apela aos novos conceitos que brotam das e nas ruas.

E deste modo temos claro que só é possível construir um país livre e emancipador dos cidadãos se descomemorarmos os sentidos opressivos do Golpe e relacioná-los, por mais duro que possa ser, com os dramas atuais da violência, do racismo, da homofobia, do machismo, enfim, das novas faces autoritárias vigentes. Descomemorar o marco de 1964 é, antes de tudo, lutar pela memória pública; é tanto reparar a violência cometida como expelir nossos sentimentos autoritários. Outrora o regime de exceção da ditadura civil e militar eliminava posições políticas divergentes e podava nossa criatividade cultural. Hoje o autoritarismo de outros modos matam mulheres, jovens, homossexuais, pobres, negros e índios. É preciso olhar para 1964 não apenas como marco de nossas vilezas passadas, mas para investigar os sentidos de sua atualidade que carecem de nossa atenção e transformação no presente. Em função dessa rica emergência, por estas e outras, não dá pra acreditar que as coisas estão perdidas. Há uma criatividade vital que brota deste chão histórico que temos a oportunidade aqui de refletir, cuja instância criativa dialoga com a luta pela memória que começamos a reivindicar tão firmemente desde os anos 1980 e que precisa continuar.

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