1964, democracia e o uso público do conhecimento histórico
Publicado: 06/04/2014, 09:38

Profª. Ms. Janaina de Paula do Espírito Santo
Professora Assistente do Depto. de História/UEPG
Meio século depois e as questões sobre o regime militar brasileiro permanecem em disputa. No pais do futebol, quase que se formam dois times a que a filiação é “compulsivamente obrigatória”. Há os que, defensores do regime encarnem diferentes faces de saudosismo, desde lembrar como “o seu tempo era melhor”, até parabenizar publicamente “os militares” (como se todos estes tivessem sido golpistas).
Há também os que chamam a atenção para um outro tipo de memória: dos desaparecidos políticos, do custo social, econômico e científico que o golpe trouxe de arrasto, prendendo, torturando e exilando uma parte da população e calando, por medo, outra parte. Dos custos do “milagre econômico” que se fizeram sentir nos anos 80 e persistem até hoje. É importante pensar, que, em História, constantemente, a simplicidade de pensar o golpe como se este fosse apenas uma escolha interpretativa esconde, muitas vezes a complexidade de um tabu, expressão do historiador Marc Ferro.
A quebra de tabus envolve revelar os “silêncios propositais”. Há, em 1964, uma forma que “aprendemos a ver o mundo”, um uso público para esse conhecimento que se propõe a definir lados, como se tudo fosse uma questão de interditos. Esse processo de cólera por uma interpretação e adesão automática pelo outro, é um indicio de como o golpe ainda nos “queima os dedos”. Mas será que essa dicotomia não fez parte de como o golpe propunha pensar a si mesmo, de seu discurso oficial frente ao povo? Não faz sentido resgatar um “ponto positivo” na Ditadura ou no golpe de 1964. Ele só existe no caráter messiânico que os envolvidos usam para referir-se a si mesmos.
De acordo com Sonia Regina de Mendonça e Virgínia Fontes, a Ditadura Civil-Militar-Empresarial passou por três fases:
1) Foram criadas as instituições necessárias para a implantação do Estado de Segurança Nacional. Aqui, a doutrina de segurança nacional, pensada pela Escola Superior de Guerra, delinearia um perfil do inimigo, próprio do período de Guerra Fria: o comunismo e sua ameaça. É interessante notar que depois da queda do muro de Berlim, esse argumento ressurge, azeitado por setores conservadores da sociedade como um movimento ainda válido para justificar suas pautas. Em lógica perversa, as lutas por direitos, pela ampliação da cidadania, ainda são combatidas com o espantalho anticomunista.
2) Marcado pelo desenvolvimento econômico dependente e associado, ou seja, pelo oligopólio, arrocho salarial e fim de qualquer representação trabalhista combativa. Este modelo exigiu um aparato repressivo que pulverizasse qualquer tentativa de oposição, que se deu tanto na institucionalização dos esquadrões da morte no DOI-CODI quanto no decreto do AI-5. Assim oficializou-se as prisões e torturas presentes desde os primeiros dias de golpe. Há uma lógica implícita aqui, que reaparece em diferentes momentos de conflito, do “povo versus o Estado”, da democracia como ameaça, da perseguição ao dissenso.
O mesmo dissenso que até hoje é o antônimo de “paz social” desejada e que faz com que pululem comparações entre a truculência da policia e a pouca garantia de direitos lá, em 1964, e cá, hoje. Tal raciocínio é perigoso exatamente por descaracterizar o período histórico, “apagando” a violência da Ditadura e os avanços, as lutas sociais e a ampliação da cidadania no período democrático. 3) O esgotamento do regime, momento da abertura e da anistia. O que muitas vezes é tratado desligando a crise econômica do processo político, e alimenta o falso argumento que a Anistia foi “cedida” pelos militares.
Nesta lógica a crise aparece como integrante da década de 80, considerada “perdida” e não como parte de um projeto arquitetado pela Ditadura, que financiou ostensivamente as grandes empresas nacionais e as que aqui se instalaram, financiamento cujo custo social ainda é pago até hoje por nós. Ainda há o argumento que a Anistia foi um “acordo” entre as partes (uma torturada e presa, a outra sem possibilidade de ser julgada por seus crimes), que confunde propositadamente resistência e violência com projeto estatal, o que ainda é amplamente reproduzido (em maior ou menor grau), porque os personagens, empresas e instituições envolvidas com a repressão da Ditadura ainda estão aí.
Mas sigamos debatendo, esperando que nossa história recente não seja assunto relegado a pobreza das análises maniqueístas, especialmente porque nosso longo e doloroso processo de transição não pode ser dado como assunto encerrado, sob condição de ignorarmos os limites e fragilidades de nossa atual democracia