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Conto: 'Preso na Página 23'

Imagem ilustrativa da imagem Conto: 'Preso na Página 23'
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Por: Giovani Marino Favero, escritor e docente do Departamento de Biologia Geral da UEPG.

- Acorda Grubbero, acorda!

- Oi?

Fui surpreendido as quatro e quarenta da madrugada por um cara vestido de bombeiro me chamando com veemência.

- Fogo? Terremoto? Infarto? Gato na árvore?

Falei rindo.

- Pare com isso, sou eu.

E apontando para o peito disse seu nome:

- Capitão Ceniza - E emendei - “O” Positivo.

- Não aguento mais essa angústia, estou preso na página vinte e três a quase uma década.

- Desculpe, mas não consigo entender o que você está falando.

- Sou eu, caramba, o Capitão Ceniza, daquele seu maldito livro, Vazio.

- Ahh, sim. Adoro a primeira página: “Saiba que você está jogando seu tempo no Vazio”. Muito bom, não é?

- No começo eu achava interessante, mas agora, parado no tempo, eu é que me sinto no Vazio.

- Tá bom, mas o que você quer de mim?

- Quero que volte e termine o livro, vivo na angústia de saber o que será do meu futuro após a página 23.

- Pois é, parei de verdade mesmo, até tenho vontade de voltar e terminar, mas sinto um enorme vazio.

Disse eu rindo novamente.

- Você sempre acorda engraçadinho de madrugada?

- “Tô rindo, mas é de desespero.”

- Imagine você dez anos parado conversando com capivaras do rio Tiete a espera do ser superior que te criou te mostrar o caminho.

- Caramba, me senti um ser divino agora. Tiete é meio forçado, acho que vou substituir pelo Pinheiros.

- Isso pouco importa. Termine ou apague o arquivo e me livre desse sofrimento.

- O mundo mudou muito, gostei desses três emes, nos últimos dez anos, não sei se um livro meio doido com um capitão, mesmo que dos bombeiros, seja bem aceito hoje.

- Pelo que fiquei sabendo bombeiro nem é militar mais.

- Veja a que ponto chegamos, terei que fazer um texto prévio explicando isso. Outra coisa que me preocupa é que não há nenhum chinês careca no texto.

- E daí?

- Todos precisam de representatividade, você tem algo contra chinês careca?

- Eu não, eu sou bombeiro, quero salvar vidas, independente de quem sejam.

- Mas se tiver que escolher entre uma criança ruiva e um border collie, quem você escolheria?

- A criança.

- Viu você está fora de moda. Como um bombeiro teria coragem de deixar um animalzinho feliz, inofensivo, comedor de perna de sofá para trás em detrimento de uma criança? Sem coração.

- Realmente você acorda engraçadão de madrugada.

- Pior que agora estou sendo sincero. Não sei qual foi a droga que colocaram na bebida da turma, mas estamos em uma época onde todo mundo sabe de tudo e com os nervos a flor da pele. Além disso, quem lê hoje em dia? Um livro com o nome de Vazio sobre um Capitão chamado Ceniza que escuta os conselhos de capivaras de um rio podre, com certeza vai vender oito exemplares, nem parente lê isso.

O silêncio e a cara de desânimo no semblante do homem fardado me comoveram.

- Faremos assim, escrevo mais dez, vinte páginas agora nas férias e vemos o que você acha.

Na madrugada seguinte sou acordado novamente, mas dessa vez por um Capitão dos Bombeiros, chinês e careca.

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