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As crianças também choram

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Por Mário Sérgio de Melo

Os cães ficam desarvorados. Tivemos uma cadela inesquecível, a Bela, uma garbosa labradora negra, que enfiava-se no canto mais improvável e inacessível da casa – debaixo da cama, atrás da geladeira ou da máquina de lavar – e só saía muito tempo de agonia depois. Mesmo que a atraíssemos com gestos e palavras de carinho e confiança, ela não lograva escapar do terror e desamparo em que mergulhava. Ficávamos tentando imaginar como ela desenvolvera tal aflição. Seria um horror de outras vidas? Teria ela sido um cão-bomba, como aquele do impressionante episódio “O túnel” do filme “Sonhos” do mestre Akira Kurosawa? Teria Bela, antes dela mesma ser estraçalhada, sofrido o martírio de ver o trágico fim de seus semelhantes, vítimas da loucura dos homens em guerra? O aparente despropositado desamparo da Bela escancarava-nos a estupidez dessa forma de comemorar – os fogos de artifício explosivos.

A Bela já nos deixou há uma década, mas ensinou-nos para sempre – os estouros dos rojões provocam medos inexplicáveis. Decerto haveria formas menos barulhentas e agressivas de comemorarmos. Atualmente são a Mimosa e a Pipoca, não tão transtornadas quanto a Bela, que não nos deixam esquecer o inferno canino vivenciado durante as ruidosas comemorações humanas. Foi assim neste último domingo, na final do campeonato de futebol. A golden Mimosa não arredava de meu pé, na hora de dormir veio deitar-se ao meu lado, o que não costuma fazer. Pipoca escondeu-se no canto atrás do aparador, esqueceu sua altivez de ladina vira-lata. E tenho constatado, nos lares de amigos e familiares, reações parecidas, de cães, gatos, pássaros: os pets parecem unir-se para demonstrar a insensatez do bizarro apreço que temos pelos estampidos. Qual seria a insana razão psicológica dessa incontível necessidade de fazer barulho?

E não são só os animais. As crianças também choram nessas horas. Principalmente as menores, que não atinam com a justificativa das agressões auditivas. E não só as crianças, mas também aqueles adultos especiais, que parecem ter uma percepção mais arrazoada – ou mais refinada – do mundo que nos cerca: agitam-se, perturbam-se quando a harmonia do entorno também é perturbada.

Muitos idosos, já acometidos da louca lucidez da velhice, também reagem como os animais e os especiais: apavoram-se, ou revoltam-se. Alcançaram aquela idade em que é dado discernir e sentir a diferença entre a saudável alegria e a catártica euforia da comemoração. Mesmo que seja para celebrar conquistas ou momentos especiais, como Natal e Ano Novo. São momentos em que parecemos necessitar extravasar em explosões as nossas reprimidas frustrações. Esquecemos de quando éramos crianças.

Aprovaram-se leis que condenam as comemorações barulhentas: estas são uma afronta para a saúde pública. Mas parece que muitos ainda tratam a saúde pública com desfaçatez. Um infeliz sintoma de falta de empatia, de despreparo para vivermos com respeito ao próximo, em uma sociedade mais amorosa.

Mário Sérgio de Melo é Geólogo, professor aposentado do Departamento de Geociências da UEPG

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