Debates
As crianças também choram
Da Redação | 23 de dezembro de 2025 - 01:35
Por Mário Sérgio de Melo
Os cães ficam desarvorados. Tivemos uma cadela inesquecível,
a Bela, uma garbosa labradora negra, que enfiava-se no canto mais improvável e
inacessível da casa – debaixo da cama, atrás da geladeira ou da máquina de
lavar – e só saía muito tempo de agonia depois. Mesmo que a atraíssemos com
gestos e palavras de carinho e confiança, ela não lograva escapar do terror e
desamparo em que mergulhava. Ficávamos tentando imaginar como ela desenvolvera
tal aflição. Seria um horror de outras vidas? Teria ela sido um cão-bomba, como
aquele do impressionante episódio “O túnel” do filme “Sonhos” do mestre Akira
Kurosawa? Teria Bela, antes dela mesma ser estraçalhada, sofrido o martírio de
ver o trágico fim de seus semelhantes, vítimas da loucura dos homens em guerra?
O aparente despropositado desamparo da Bela escancarava-nos a estupidez dessa
forma de comemorar – os fogos de artifício explosivos.
A Bela já nos deixou há uma década, mas ensinou-nos para
sempre – os estouros dos rojões provocam medos inexplicáveis. Decerto haveria
formas menos barulhentas e agressivas de comemorarmos. Atualmente são a Mimosa
e a Pipoca, não tão transtornadas quanto a Bela, que não nos deixam esquecer o
inferno canino vivenciado durante as ruidosas comemorações humanas. Foi assim
neste último domingo, na final do campeonato de futebol. A golden Mimosa não
arredava de meu pé, na hora de dormir veio deitar-se ao meu lado, o que não
costuma fazer. Pipoca escondeu-se no canto atrás do aparador, esqueceu sua
altivez de ladina vira-lata. E tenho constatado, nos lares de amigos e
familiares, reações parecidas, de cães, gatos, pássaros: os pets parecem
unir-se para demonstrar a insensatez do bizarro apreço que temos pelos estampidos.
Qual seria a insana razão psicológica dessa incontível necessidade de fazer
barulho?
E não são só os animais. As crianças também choram nessas
horas. Principalmente as menores, que não atinam com a justificativa das
agressões auditivas. E não só as crianças, mas também aqueles adultos
especiais, que parecem ter uma percepção mais arrazoada – ou mais refinada – do
mundo que nos cerca: agitam-se, perturbam-se quando a harmonia do entorno
também é perturbada.
Muitos idosos, já acometidos da louca lucidez da velhice,
também reagem como os animais e os especiais: apavoram-se, ou revoltam-se. Alcançaram
aquela idade em que é dado discernir e sentir a diferença entre a saudável
alegria e a catártica euforia da comemoração. Mesmo que seja para celebrar
conquistas ou momentos especiais, como Natal e Ano Novo. São momentos em que
parecemos necessitar extravasar em explosões as nossas reprimidas frustrações.
Esquecemos de quando éramos crianças.
Aprovaram-se leis que condenam as comemorações barulhentas: estas são uma afronta para a saúde pública. Mas parece que muitos ainda tratam a saúde pública com desfaçatez. Um infeliz sintoma de falta de empatia, de despreparo para vivermos com respeito ao próximo, em uma sociedade mais amorosa.
Mário Sérgio de Melo é Geólogo, professor aposentado do Departamento de Geociências da UEPG