Debates
Francisco, Mujica e a sociedade ensandecida
Francisco e Mujica foram homens de paz, de simplicidade
Da Redação | 16 de maio de 2025 - 00:15

Por Mário Sérgio de Melo
O Papa Francisco e Pepe Mujica nos deixaram. Comove vê-los incensados na mídia, nas redes sociais, nas rodas de conversas – estas cada vez mais raras. Muita gente celebra os dons destes homens que nos deixam, mas nos presenteiam com um legado de amorosidade, bom humor, lucidez, solidariedade, cuidado com a Mãe Terra, os povos originários, o trabalhador simples, as minorias, os refugiados da insensatez humana, as mulheres que lutam para transformar o perverso mundo patriarcal.
Francisco e Mujica foram homens de paz, de simplicidade. Quantas irmãs podemos encontrar para estas duas abençoadas irmãs: liberdade, justiça, bondade, fraternidade, a amorosidade que se estende a todos e a tudo o que a natureza nos dá, que transforma nosso planeta na Mãe Terra que acolhe e nutre, mas que teimamos afrontar e magoar.
Mas, se tanto escutamos incensar e louvar as qualidades de Francisco e Mujica, é porque uma imensa maioria silencia. Esse silêncio encoberta, talvez, rancor, culpa, desdém? Os dois homens que agora são incensados foram chamados de comunistas, de esquerdistas – pejorativamente, por quem ignora o verdadeiro sentido destas palavras – e até considerados inimigos da sociedade. Qual sociedade? Francisco dizia que preferia tomar suas refeições no restaurante do Vaticano, assim evitava ser envenenado. Mujica foi perseguido e preso por mais de uma década. Que sociedade persegue e condena estes homens, e depois celebra-os quando nos deixam? Celebramos seu legado, ou sua partida?
Temos de concluir que a sociedade está doente. Um diagnóstico que o paciente recusa reconhecer, algo comum em tais distúrbios. Nossa doença é mental, emocional, e também ética e espiritual. Não mostramos só sintomas de insanidade – ao acumularmos arsenais capazes de destruir o mundo várias vezes –, de desvario – ao escolhermos e seguirmos líderes e ícones psicopatas, megalomaníacos e malignos –, de enfermidade espiritual – ao adorarmos o deus dinheiro e o hiperconsumismo, ao professarmos fé cega e segregacionista, inculcada por falsos profetas, ao abraçarmos a deturpação dos princípios religiosos legítimos.
Francisco foi um apóstolo da fé no homem celestial e na amorosidade. Mujica foi um apóstolo do homem amante da liberdade, da justiça, da simplicidade. Ambos foram apóstolos do respeito ao próximo e à natureza. E por assim serem, se por um lado são agora incensados midiaticamente, na verdade continuam vetados nas engrenagens ocultas que movem o sistema ensandecido que vivemos. Um sistema cruel, que manipula e explora o ser humano e a natureza, mas que acaba por ser interiorizado por todos nós, que o realimentamos com nossos medos e preconceitos.
Uma realidade enlouquecida. Talvez por esse motivo, junto com os louvores midiáticos a Francisco e Mujica, estejamos fazendo também uma penitência, um mea-culpa. Um resquício de esperança de que herdemos suas qualidades, e nos tornemos capazes de contribuir para mudar o destino ensandecido da sociedade atual.
Mário Sérgio de Melo é Geólogo, professor aposentado do Departamento de Geociências da UEPG