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O Preço da Fé: Quando a religião vira negócio
Da Redação | 08 de maio de 2025 - 00:35

Por André Charone
Nos últimos anos, a fé encontrou novo altar: as redes
sociais. De cultos ao vivo no Instagram a pregações no YouTube monetizadas com
superchats e “pix profético”, o ambiente religioso brasileiro tem sido
redesenhado por influenciadores espirituais, muitos deles autointitulados
“apóstolos”, “profetas” e “missionários mirins”. O que antes se restringia ao
púlpito agora chega com filtros, hashtags e campanhas de arrecadação.
Essa nova onda de evangelização digital, embora conecte
multidões e ofereça conforto a muitos, também escancara uma realidade
inquietante: a monetização da fé e os valores milionários por trás de alguns
ministérios online.
O fenômeno do Missionário Mirim Miguel
Um dos casos mais emblemáticos é o de Miguel Oliveira, o
“missionário mirim” de 14 anos. Com mais de um milhão de seguidores, Miguel
realizava cultos e eventos com entradas que variavam entre R$ 50 a R$ 100, e
recebia doações generosas de seus fiéis, em muitos casos motivadas por
promessas de cura, libertação e "unção financeira". Estima-se que
suas aparições rendessem até R$ 30 mil por culto.
A recente decisão do Conselho Tutelar de impedir que Miguel
pregue, viaje ou use redes sociais por tempo indeterminado gerou comoção entre
seguidores e um necessário debate público: até que ponto é legítima essa forma
de atuação religiosa? E quem está, de fato, se beneficiando financeiramente com
tudo isso?
A fé como modelo de negócios
Para o consultor financeiro, contador e mestre em negócios
internacionais André Charone, esse fenômeno revela um lado obscuro da fusão
entre estratégias de marketing digital e elementos religiosos. “Não há problema
algum em utilizar ferramentas modernas para propagar mensagens espirituais,
especialmente se for para ajudar e confortar as pessoas. O problema surge
quando essas ferramentas se tornam apenas meios de enriquecimento pessoal, sem
transparência, prestação de contas ou qualquer controle institucional”, alerta.
Segundo levantamento do Ministério da Fazenda, somente entre
2020 e 2023, mais de R$ 2,4 bilhões foram movimentados por instituições
religiosas cadastradas como isentas, muitas delas ligadas a líderes com forte
atuação online. Em grande parte dos casos, o controle sobre esses recursos é
mínimo, e muitos dos doadores não têm a menor ideia de como esse dinheiro está
sendo usado.
“Em qualquer empresa de grande porte, há exigência de
demonstrações contábeis, compliance e auditoria. No mundo religioso, por falta
de regulação ou conivência institucional, muitos líderes manejam milhões com
total autonomia. A fé, infelizmente, virou uma das fontes mais lucrativas e
menos fiscalizadas do país”, reforça Charone.
A lacuna fiscal e a blindagem jurídica
O Brasil é um dos países mais permissivos do mundo quando o
assunto é controle fiscal sobre organizações religiosas. A imunidade
tributária, embora constitucionalmente garantida, transformou-se em terreno
fértil para abusos, especialmente em um cenário no qual igrejas passaram a ser
também marcas, empresas de mídia e plataformas de arrecadação em massa.
Em tese, igrejas e templos são obrigados a manter
contabilidade regular e demonstrar que suas receitas estão sendo destinadas às
suas atividades essenciais, como cultos, assistência social, manutenção de
instalações e promoção da fé. Essa exigência está expressa no artigo 14 do
Código Tributário Nacional, que trata das condições para manutenção da
imunidade.
Contudo, na prática, essa regra é amplamente ignorada,
especialmente por microigrejas, projetos familiares e ministérios digitais. “A
Receita não tem estrutura para fiscalizar todas as igrejas. E a maioria só
apresenta algum tipo de contabilidade quando precisa emitir uma certidão
negativa ou captar recurso público”, afirma André Charone.
Segundo o especialista, a displicência contábil dentro do
universo religioso é mais comum do que se imagina. “É possível que um templo
que arrecade R$ 500 mil por mês não tenha sequer um balancete mensal ou
prestação pública de contas. Em muitos casos, o dízimo entra no envelope e vai
direto para o bolso do líder”, alerta.
O perigo da fé sem limites
É preciso destacar que fé e religião são pilares
fundamentais para milhões de brasileiros, oferecendo apoio espiritual e sentido
de comunidade. A crítica aqui não é à religiosidade em si, mas à forma como ela
tem sido instrumentalizada para ganhos questionáveis.
“Todas as religiões merecem respeito e as igrejas possuem um
papel social importantíssimo. No entanto, quando o altar vira palco e a
mensagem vira produto, o risco de manipulação é altíssimo. As pessoas não
compram apenas um livro ou um ingresso,
elas compram esperança. E explorar isso sem ética é inaceitável”,
conclui André Charone.
Entre o Sagrado e o Lucrativo
Diante de um cenário onde líderes mirins e influencers
movimentam cifras dignas de celebridades e pastores acumulam patrimônios
milionários enquanto pedem "pix da fé", a sociedade precisa
urgentemente debater os limites éticos, fiscais e legais dessa atuação. Fé não
deveria ter preço, e muito menos virar moeda de troca entre carisma e
enriquecimento.
A espiritualidade pode (e deve) caminhar com a tecnologia,
mas não pode se transformar em um negócio imune à responsabilidade.
André Charone é contador, professor universitário, Mestre em
Negócios Internacionais pela Must University (Flórida-EUA), possui MBA em
Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria pela FGV (São Paulo – Brasil) e
certificação internacional pela Universidade de Harvard (Massachusetts-EUA) e
Disney Institute (Flórida-EUA).