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Bets, endividamento e fraude: o outro lado da ampliação do crédito consignado
Da Redação | 22 de março de 2025 - 01:30

Por Inon Neves
A proposta do governo federal de criar uma plataforma para
empréstimo consignado voltada para trabalhadores com carteira assinada (CLTs) –
que pode sair do papel ainda esse ano, traz consigo a promessa da
democratização do crédito e também joga luz sobre uma série de questões que
podem agravar o endividamento da população brasileira e aprofundar problemas
estruturais relacionados à oferta desenfreada de crédito de baixo custo – e as
famosas “bets”, ou site de apostas, representam um dos maiores desafios nesse
sentido.
Soma-se a isso, também, o fato de que a plataforma pode
aumentar ainda mais o número de casos de golpe usando o mecanismo do crédito
consignado – embora essa informação não tenha sido contabilizada nos últimos
dois anos, em 2022 os Procons brasileiros registraram um volume de 57.874
queixas de golpes envolvendo empréstimos consignados – o que equivalia a mais
de seis denúncias por hora.
Nessa receita perigosa, adicionamos ainda o problema do
endividamento das famílias brasileiras. Ainda que tenha recuado 0,9 ponto
percentual em um ano, segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de
Bens, Serviços e Turismo (CNC), divulgados no final de janeiro, a maior
exposição dos trabalhadores ao crédito pode criar uma espiral de endividamento
ligada, justamente, às bets.
As “bets” são como ficaram conhecidos os sites de apostas
esportivas, que acabaram, também, abrindo caminho para um novo tipo de site de
apostas, os cassinos online – comumente chamados como “Jogo do Tigrinho”. O
problema é que a lei 13.756/2018, que autorizou as empresas de apostas, também
previa um prazo máximo de quatro anos para que o Ministério da Fazenda
regulamentasse a atividade, o que não aconteceu. O resultado é que essas
empresas operam dentro de um “limbo regulatório”, sem regras claras.
Sem regras claras, e com um considerável alcance
publicitário, principalmente em mídias sociais, os jogos de apostas viraram uma
epidemia. Em 2024, as famílias brasileiras apostaram em torno de R$ 240 bilhões
nas bets – levando mais de 1,8 milhão de pessoas à inadimplência por conta das
apostas virtuais. As famílias de menor renda, segundo a CNC, foram as mais
impactadas: em janeiro do ano passado, representavam 26% – em dezembro, esse
número chegou a 29%.
Em um contexto no qual a oferta de crédito é amplamente
facilitada e a análise de risco nem sempre é aprofundada, muitos trabalhadores
podem ser levados a utilizar o empréstimo consignado para apostar nos jogos
online. Obviamente, isso pode levar a um aumento ainda maior do endividamento,
com trabalhadores recorrendo a novas operações de crédito para saldar dívidas
anteriores, criando uma espiral negativa de dependência financeira. Pesquisa
recente do SPC Brasil, em parceria com a Confederação Nacional de Dirigentes
Lojistas (CNDL), aponta que o percentual de inadimplência entre consumidores
que recorrem repetidamente a esse tipo de empréstimo tem aumentado
significativamente, reforçando a ideia de que a facilidade de acesso, sem uma
gestão financeira responsável, pode transformar o crédito em um instrumento de
risco elevado.
Mais do que isso, algumas pesquisas apontam que até 60% dos
usuários das plataformas de jogos de azar podem usar dinheiro de crédito,
incluindo o consignado, para as apostas. E para tornar a situação ainda mais
dramática, o volume inadimplente no crédito consignado para trabalhadores do
setor privado aumentou 0,8 ponto percentual entre 2023 e 2024, segundo o Banco
Central.
Dados recentes do Banco Central indicam que o volume de
operações de crédito consignado tem crescido de forma acelerada nos últimos
anos, atingindo níveis que exigem um monitoramento mais rigoroso das
instituições financeiras e das plataformas intermediárias.
A questão se agrava quando se leva em consideração que, para
que a plataforma de empréstimo consignado opere em larga escala, os bancos e
instituições financeiras serão obrigados a adotar medidas antifraude cada vez
mais robustas.
O cenário de digitalização dos serviços financeiros tem
mostrado, nos últimos anos, um aumento expressivo nos casos de fraudes
eletrônicas, muitas vezes sofisticadas e difíceis de detectar. Assim, a
necessidade de investir em tecnologia e em sistemas de segurança cibernética se
torna imperativa para mitigar riscos que podem comprometer não apenas a saúde
financeira dos consumidores, mas também a estabilidade do sistema financeiro
como um todo.
Além disso, a centralização das operações em uma única
plataforma pode criar um ambiente propício para a ocorrência de fraudes
internas e a manipulação de dados. A automatização e a integração dos sistemas,
quando não acompanhadas de um robusto controle interno, abrem espaço para que
agentes mal-intencionados explorem vulnerabilidades, oferecendo um cenário onde
o prejuízo pode ser duplo: por um lado, o trabalhador se vê envolvido em
dívidas que comprometerão sua renda, e, por outro, a instituição financeira
pode ser vítima de fraudes que aumentam os custos operacionais.
Além da tecnologia, os bancos precisarão contar também com
serviços de formalização de crédito bancário, nos quais a concessão e a gestão
desses empréstimos sejam realizadas de maneira transparente e segura. A
formalização do crédito consignado envolve a verificação minuciosa dos dados
dos solicitantes, garantindo que os empréstimos sejam concedidos apenas a
trabalhadores que atendam a critérios específicos de elegibilidade. Esse
processo inclui a análise de documentos, como comprovantes de renda e histórico
de crédito, para assegurar que os beneficiários tenham capacidade de honrar com
os pagamentos.
Em última análise, o caminho a ser seguido deve ser pautado
pela transparência, pela responsabilidade e pela busca de um equilíbrio entre a
inovação tecnológica e a proteção dos direitos dos consumidores.
A plataforma de empréstimo consignado pode, sem dúvida,
oferecer benefícios significativos, mas esses benefícios não podem ser
alcançados à custa do bem-estar financeiro dos trabalhadores. É imperativo que
cada operação seja acompanhada de uma análise criteriosa, que as medidas
antifraude sejam constantemente revisadas e atualizadas e que os consumidores
tenham acesso a informações claras e precisas sobre os riscos e as condições do
crédito contratado.
Dessa forma, poderemos transformar o acesso facilitado ao crédito em uma ferramenta de inclusão e de desenvolvimento, e não em um instrumento que, inadvertidamente, aprofunda o endividamento e a instabilidade econômica. A construção de um ambiente financeiro mais seguro e sustentável passa necessariamente pelo diálogo entre todos os envolvidos e pela implementação de medidas que estejam à altura dos desafios impostos pela era digital.
Inon Neves, vice-presidente da Access