Debates
O périplo da conta d’água
Da Redação | 19 de março de 2025 - 00:07

Por Mário Sérgio de Melo
Justino Sempadim paga as contas e os tributos em dia, vota nas eleições em candidatos honestos e justos, que já mostraram a que vieram, e não nos ilusionistas que prometem milagres. Entre as contas que paga em dia, está a de água. Justino mora com esposa e filho. Segundo dados de agências internacionais, eles devem consumir cerca de 330 litros de água por dia. Ou seja, 9.900 litros/mês. Vamos arredondar para 10 m³/mês.
Mas Justino, desatento e confidente, não notou que sempre a conta da empresa de saneamento cobrava 30 m³/mês. Ah, a construção era antiga, o hidrômetro também. Estava lá desde antes da família se mudar para aquela casa. E o relógio se situava para dentro do muro, era preciso que o leitor tocasse a campainha para fazer a leitura.
Até que, com a privatização e a terceirização dos serviços da saneadora, o leitor, obrigado a cumprir uma forçada meta, passou a fazer a leitura a cada três meses. Nos outros dois, registrava “ausente”, e estimava um consumo de 10 m³ para os meses em que a leitura não era realizada. Quando voltava a fazer a leitura no velho hidrômetro, ele marcava um consumo de 30, e não 10 m³/mês. Então o valor da conta era acrescido das sobretaxas sobre as crescentes faixas de consumo. Uma das contas ultrapassou os mil reais, Justino foi reclamar no escritório da saneadora, lá no alto da avenida. O funcionário pediu foto do hidrômetro, quando a viu de pronto reduziu o valor para aquele usual. Justino espantou-se, pareceu-lhe que o funcionário reconhecera sem questionamentos que algo estava errado no valor.
Para evitar as sobretaxas por consumo elevado, Justino formalizou pedido para transferir o hidrômetro para a calçada em frente à casa. Um processo demorado, meses para instalar novo hidrômetro e refazer a calçada, serviços cobrados do consumidor. A caixa do novo relógio, precária e frágil, restou cheia de terra. O fecho ficou obstruído, não durou dois meses, entalou, quebrou.
Mas Justino notou uma diferença: agora, leitura feita mensalmente sem ter que tocar a campainha, sem o argumento do “ausente”, o novo hidrômetro dizia que a família de três pessoas consumia 10 m³/mês, e não os 30 m³ que dizia o velho e descalibrado relógio. Justino deduziu que por anos pagara à saneadora 20 m³/mês que a família não consumira.
Logo veio o racionamento de água na cidade, o rodízio de fornecimento entre os bairros. Alegada culpa do calor do verão, aumentando o consumo. Mas Justino lia no jornal que bilhões eram pagos aos acionistas da agora privatizada saneadora. Não estariam então faltando recursos para os obrigatórios investimentos?
Quando o fornecimento era retomado após um dia de racionamento, a família de Justino percebia as “explosões” nas torneiras e na caixa d’água que era reabastecida: ar que vinha na tubulação que estivera vazia. E então outra surpresa: com a água racionada, banhos de pingos, o consumo medido no novo hidrômetro subiu de 10 para 16 m³/mês!
Estaria a saneadora agora também cobrando pelo ar que vem pelos canos?
O autor é geólogo, professor aposentado do Departamento de Geociências da UEPG