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Fim da saidinha de presos: a propaganda opressiva venceu
Da Redação | 11 de junho de 2024 - 00:36
![Imagem ilustrativa da imagem Fim da saidinha de presos: a propaganda opressiva venceu](https://cdn.jornaldamanha.info/img/normal/520000/1000x500/Debates_00521890_0_202405211552.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.jornaldamanha.info%2Fimg%2Fnormal%2F520000%2FDebates_00521890_0_202405211552.jpg%3Fxid%3D1769493%26resize%3D1000%252C500%26t%3D1722040566&xid=1769493)
Por Marcelo Aith
“Abandonai toda a
esperança, vós que entrais”. Esta frase, escrita no portão do Inferno, da
“Divina Comédia”, de Dante Alighieri, deveria estar na entrada de quase todas
as unidades prisionais brasileiras. O sistema prisional brasileiro é cruel,
degradante, desumano e todos os demais adjetivos similares que possam vir à
cabeça.
Esse anacrônico e
obsoleto sistema carcerário, que não ressocializa nem impede que haja o
arrefecimento de crimes, que não inibe a reincidência e nem impede que jovens
comecem a delinquir. Esse arcaico e obsoleto sistema, máquina de fazer
crueldades e desumanidades às pessoas presas, perde um dos poucos instrumentos
eficazes de manutenção do bom convívio social que eram as saídas
temporárias.
Embalados por uma
publicidade opressiva que inflama o consciente coletivo com a ideia que as
pessoas que cometem algum tipo de crime têm que sofrer as consequências de seus
atos, independentemente do status caótico dos presídios, o Congresso Nacional
derrubou o veto presidencial, que restabelecia, em parte, a saída temporária,
importante instrumento de reinserção do condenado na sociedade.
Passados alguns
dias da derrubada do veto, restam alguns rescaldos dessa infeliz decisão do
Congresso Nacional a serem elucidados.
Falando em
rescaldo, lembro do meu avô João, imigrante Sírio, que diante de qualquer
dificuldade falava sobre a enxurrada. Dizia ele: “quando a enxurrada vem, não
queira segurá-la com seus braços, deixa-a passar e no outro dia, quando o sol
raiar, verá os estragos”. É exatamente isso que tratarei aqui! O que sobrou
após o estrago feito pelo Congresso Nacional ao praticamente extinguir a saída
temporária.
Com a derrubada do
veto, ficou em suspenso a definição, por exemplo, da situação das pessoas que
já estavam cumprindo suas penas antes da entrada em vigor da Lei 14.843/2024.
Serão preservados os seus direitos ou a norma retroagirá para alcançá-los, impedindo-os
de fruir do direito? Para responder a essa dúvida, há que ser analisada a
natureza jurídica na referida norma, ou seja, é uma norma penal ou processual
penal?
Os desavisados
perguntarão: o que isso tem a ver com a aplicação imediata da Lei que
praticamente extinguiu a “saidinha”? Por que não impedir esses “criminosos” do
direito à saída temporária imediatamente?
A resposta é
simples: se reconhecermos a Lei de Execução Penal como uma norma de natureza
penal (material ou substancial), a nova Lei somente alcançará aqueles que
iniciarem a execução de suas penas após a entrada em vigor da norma. Já se
considerarmos a natureza processual penal da Lei de Execução Penal, as
alterações introduzidas pela nova lei alcançarão, como regra, as pessoas que já
estão cumprindo a execução (tempus regit actum).
Para melhor
compreendermos as diferenças, nada mais pertinente do que trazer exemplos. Um
exemplo de norma penal são as regras de fixação da pena e os tipos penais,
que definem o conceito de crime e que estabelecem as causas de extinção
da punibilidade. Por outro lado, as normas processuais são aquelas destinadas a
regular a relação jurídica entre as partes (acusação e réus) e os atos do
juízo.
O leitor deve
imaginar: que pueris esses exemplos! No que repercutem na execução penal?
Para responder essa
nova indagação, temos que mergulhar, não muito profundamente, na busca por
entender o que se executa após o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória.
Pois bem.
Vamos lá com outro
exemplo. Suponhamos que uma pessoa é condenada a 9 anos prisão, em regime
inicial fechado, o que se executa?
Executa-se o
comando constante da sentença, ou seja, a pena privativa de liberdade.
Socorrendo-se do exemplo acima, considerando que a pena é o objeto central da
execução, bem como que para se fixar a pena há que se buscar regras previstas
no Código Penal, inequivocamente estamos diante de uma de norma material
(penal).
Para além disso,
não se pode olvidar que a Lei de Execução Penal regula a vida do condenado
durante a privação da liberdade de locomoção, na medida em que estabelece os
seus direitos e deveres, bem como as regras de progressão de regime, remição de
pena, livramento condicional, etc., todas ligadas umbilicalmente à pessoa do
preso. Todas implicam efetivamente no cumprimento da pena. Assim reconhecer a
natureza material (penal) da norma se impõe.
Com efeito,
reconhecendo-se a natureza penal da Lei de Execução, nenhuma alteração
legislativa, como as impostas pela Lei 14.843/2024, que suprimiu direitos dos
executados, pode alcançar as pessoas que já estão cumprindo as suas
penas.
Portanto, as
execuções iniciadas antes 11 de abril de 2024, não são alcançadas pela
alteração, assim farão jus as saídas temporárias, haja vista que trouxe regras
que agravam o cumprimento da pena.
Há algumas decisões
corajosas e importantes nos Tribunais brasileiros, como a proferida pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “A Lei 14.843/24, que alterou disposições
da LEP, tornou o cumprimento da pena mais gravoso ao condenado por crime
hediondo, passando a proibir o deferimento da saída temporária e do trabalho
externo sem vigilância direta. Portanto, a referida norma, ao menos neste
ponto, possui inegável conotação material, não podendo retroagir em prejuízo do
paciente, conforme comando constitucional previsto no art.5, XL, da CF”.
O artigo 5º, inciso
XL, da Constituição da República, aponta que “a lei penal não retroagirá, salvo
para beneficiar o réu”. Com efeito, ao retirar um direito do executado — que
possibilitaria que ele, após o cumprimento de parte de sua pena e estando no regime
semiaberto, saísse do cárcere por um determinado período para retomar o
convívio familiar e frequentar curso supletivo profissionalizante — estará
impondo ao executado um gravame, portanto, não pode retroagir.
Inequivocamente, a alteração agravou o cumprimento da pena e não pode ser aplicado imediatamente às execuções em curso.
Com isso, o Poder
Judiciário será submetido a um grande desafio quando começarem a surgir em
larga escala pedidos de saída temporária, uma vez que a grande mídia iniciará
uma batalha para convencer a população que o judiciário, se deferir os pedidos,
estará compactuando com a impunidade, ou alguém duvida que será esse o
discurso?
Já durante a
votação no Congresso Nacional dos vetos presidenciais, deputados e senadores,
favoráveis à derrubada do veto, fizeram calorosos discursos recheado de meias
verdades, distorcendo realidade. Um exemplo claro foi o discurso do Senador
Flávio Bolsonaro, relator do projeto de lei no Senado, que homenageou um
policial que foi assassinado por um condenado que estava no gozo da saída
temporária: “Foi assassinado covardemente por uma dessas pessoas que saiu
durante a ‘saidinha’ e não só não retornou como matou um pai de família, um
policial militar. Então nós temos a obrigação de completar o serviço agora: não
vamos abrir mais brecha nenhuma para esse tipo de benefício. O voto é não, a
favor das vítimas e contra os bandidos”.
Porém, a realidade
nacional é absolutamente diversa do fatídico episódio envolvendo o Policial
Militar mineiro. Em verdade, o índice de não regresso após a saída temporária é
de 2% a 5%, sendo o percentual de crimes cometidos por liberados durante esse período
é inferior a 1%. Um importante paradigma foi a situação no Estado de São Paulo,
que no período natalino de 2023, 34 mil presos tiveram o direito à saída
temporária, sendo que apenas 1,5 mil não retornaram no prazo estabelecido no
decreto. No entanto, somente 81 cometeram algum tipo de delito, ou seja,
aproximadamente 0,23% praticaram crime.
Não se está aqui a
diminuir a dor daquele que foi vítima da conduta delitiva, mas sim objetiva
sinalizar a desproporcionalidade da restrição do direito por conta de atos de
uma ínfima minoria.
Dessa forma, caberá
ao Judiciário brasileiro decidir se segue as regras concernentes a
irretroatividade do direito material, haja vista que a Lei de Execução Penal
traz regras substantivas (penais), ou atender ao clamor social, eivado de
informações divorciadas da realidade, e restringir o direito daqueles que já
estavam cumprindo suas penas quando da entrada em vigor da Lei 14. 843/24.
Oxalá, que o
entendimento dos juízes seja pela aplicação do artigo 1º da Lei de Execução
Penal, que preconiza como um dos objetivos proporcionar condições para a
harmônica integração social do condenado.
*Marcelo Aith é
advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum
Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino
e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de
Salamanca