Debates
Vacinação: a legalidade do Certificado Verde Digital
Da Redação | 28 de agosto de 2021 - 01:50
Por Fernanda Schaefer
A imunização é uma forma de capacitar um
corpo para identificar e eliminar organismos estranhos. Trata-se de uma
necessidade médica que cria artificialmente uma proteção para a saúde. Do
ponto de vista sanitário, talvez seja o meio que apresenta melhor
custo-benefício no combate a doenças infectocontagiosas como a
Covid-19. Testes em larga escala, implantação de quarentenas e atestados
de recuperação de Covid-19 não dispensam a necessidade de imunização.
No Brasil, embora o STF tenha autorizado a
incorporação da vacinação como obrigatória (ARE 1.267.879 e ADIs 6586 e 6587),
o Plano Nacional de Imunização (PNI) e o Plano Nacional de Operacionalização da
Vacinação contra a Covid-19 preveem que as pessoas são
livres para aderir ou não à campanha. No entanto, embora seja
prevista certa margem de autonomia, nada impede que leis locais ou
até normas internacionais tragam restrições à circulação de
pessoas não imunizadas em razão do risco que
representam à coletividade.
Se isso pode parecer, à primeira vista, uma
afronta contra a liberdade, por outro lado as restrições são facilmente
justificadas pela necessidade de proteção da saúde coletiva.
Isso é ainda mais relevante tratando-se de um vírus que
afeta o mundo inteiro há mais de 18 meses e cujos reflexos
sociais e econômicos deverão permanecer por muito tempo.
No dia 20 de junho, a União Europeia aprovou o Certificado
Verde Digital, que torna obrigatória a vacinação contra a Covid-19 para
viajantes que entrarem nos países membros do bloco. O
certificado passará a ser exigido a partir de 1º de julho.
Para obter o certificado, é necessário que a
imunização tenha sido feita com vacinas aprovadas pelos países signatários ou
homologadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar das críticas
e acusações de ser uma prática abusiva, a exigência de fato encontra
respaldo legal e a ponderação de interesses deixa clara a sua legalidade.
A prática já é comum com outras doenças como, por
exemplo, a exigência de vacinação contra a febre amarela. Trata-se do
estabelecimento de um padrão de segurança não só para o turista
que pretende visitar uma região com altos índices da doença, mas
também de proteção da população e do sistema de saúde local. Países como
Austrália, África do Sul, Arábia Saudita, China, Egito, entre outros,
exigem o Certificado Internacional de Vacinação e Profilaxia (CIVP) e o
embarque para esses países pode ser proibido caso o passageiro não apresente
o documento.
A mesma lógica opera no Certificado Verde Digital. Em busca da proteção da saúde coletiva local contra o SARS-CoV-2, países do bloco passarão a exigir o comprovante de vacinação, o que poderá facilitar a circulação territorial. Portanto, para entrar nesses países (e diversos outros que caminham no mesmo sentido), a vacina deixa de ser uma escolha e passa a ser uma obrigação respaldada pelos mais elevados valores de solidariedade social.
Além da possibilidade de exigência do Certificado Verde
Digital, alguns grupos estão criando outras restrições. A Associação
Internacional de Transporte Aéreo (IATA) desenvolveu o IATA Travel Pass,
aplicativo que está em fase de testes nos Emirados e no Qatar. Por meio do
aplicativo, as autoridades locais podem verificar a autenticidade de
testes e vacinações contra a Covid-19 para ingresso nesses países.
No mesmo sentido, o Congresso Nacional aprovou no dia 10 de
junho de 2021 o Projeto de Lei n. 1.674/21 que cria o Certificado de
Imunização e Segurança Sanitária (CSS). A nova legislação permitirá a
circulação de pessoas imunizadas em espaços públicos ou privados em que
há restrições de acesso em razão da pandemia.
Por outro lado, a criação dos certificados digitais de
vacinação acabou criando mais uma categoria de egoísmos no Brasil: em um
cenário de escassez de vacinas, as pessoas querem escolher o imunizante visando
a possibilidade de viajar a passeio. É possível que no futuro, quando
as vacinas estiverem disponíveis no setor privado, esse comportamento se
extinga. O problema está no presente em que pessoas estão deixando de se
imunizar com o seu grupo ou faixa etária para esperar por doses de
fabricantes aceitos na União Europeia. Esse comportamento egoísta quebra o
pacto social, desestabiliza o sistema e coloca em risco a saúde da
coletividade.
A situação é diferente no turismo em busca da
vacina. Embora críticas possam ser feitas pela conduta escancarar desigualdades
sociais, por outro lado, vale dizer que a prática não gera
impactos negativos no sistema público e tão pouco ameaça a coletividade.
O risco que a pessoa que se recusa conscientemente a se
vacinar traz à coletividade é enorme, o que
justifica as restrições à circulação dessas pessoas. Não se
trata de violação injustificada de uma liberdade, mas sim, de proteção da
saúde coletiva em face de decisões egoístas. A imunidade coletiva é um
bem público coletivo que exige proteção especial e que autoriza a adoção
de medidas restritivas para aqueles que a colocam em risco.
*Fernanda Schaefer é advogada e coordenadora da
Especialização em Direito Médico e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUCPR)