Debates
A identidade do país e do governo
Da Redação | 14 de maio de 2019 - 02:32
Por Gaudêncio Torquato
A análise política trabalha com dois conceitos
para interpretar fenômenos ligados aos protagonistas da política, sejam pessoas
físicas ou jurídicas, políticos ou governos: identidade e imagem. O primeiro se
refere à índole dos protagonistas, seu caráter, programas e ações, o que
verdadeiramente representam; já a imagem é a projeção da identidade,
significando a percepção que deles têm os cidadãos, a maneira como as pessoas
vêem os integrantes da esfera política.
A identidade do Brasil, por exemplo, abriga um
conjunto de elementos, dentre os quais o tamanho do território, suas riquezas
naturais, a natureza de sua população, os ciclos históricos, as tradições e
costumes, enfim, tudo que possa realçar o porte do país. Convido o leitor a
construir na mente o mapa da identidade da Nação brasileira. Da mesma maneira,
tente imaginar a identidade do Estado e município onde mora. Faça uma
comparação com outros entes federativos. E pense na questão: os governos do
Estado e do país correspondem efetivamente à dimensão dos territórios que
governam?
Escolhamos, a título de melhor associação de
ideias, o governo Bolsonaro. Sem intenção de diminuir seu peso na balança da
análise política, cresce a percepção de que a identidade do governo é baixa em
relação à altura do Brasil. É como se o país medisse um metro de altura e a
administração Bolsonaro apenas cinquenta centímetros. Conclusão: falta muito
governo para cobrir o real tamanho do nosso território continental.
O que causa tal sentimento? Vamos lá: a crise
interna entre grupos, a ideologização que gera conflitos, o despreparo de
perfis, a extrema relevância que se dá ao guru da família Bolsonaro e até mesmo
o baixo nível na linguagem usada por protagonistas. Eis o que disse durante a
semana a ministra dos Direitos Humanos: “a Funai tem de ficar com mamãe
Damares, não com papai Moro”. Assim a titular da pasta de Direitos Humanos fez
apelo para conservar sob sua órbita a Fundação Nacional do Índio. Já o
horoscopista elogiado pelo presidente e agraciado com o maior galardão do
Itamaraty é o recordista no uso de palavras chulas.
Ora, há uma liturgia do poder, que obriga
participantes da esfera governamental a adotar posturas condizentes com o
cargo, o que inclui o uso de expressão conveniente. O que se constata é a
“infantilização” da linguagem (essa de Damares) ou os adjetivos sacados do
pântano por figuras que posam de heróis. O próprio Bolsonaro faz afirmações que
fogem à régua da liturgia presidencial.
A sensação de um governo menor deriva também do
fato de se fazer trocas (ou criação) de áreas – Coaf da Justiça para a
Economia, Funai em negociação, política industrial saindo da Economia para
Ministério da Tecnologia, renascimento de ministérios – não por questões de
escopo técnico, mas por conveniências de natureza política. Diminuir poder de um
e passar a outro. Onde está o tão propagado compromisso de evitar o
“troca-troca”, o “toma lá dá cá”?
Espraia-se a percepção de que a administração
não é operada dentro de critérios técnicos. A taxa de improvisação é alta. Há
ilhas de qualidade, como é o caso da equipe econômica comandada pelo ministro
Paulo Guedes ou o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, mas o
arquipélago governamental é povoado de perfis sem densidade/experiência na área
em que atuam.
Qual é, afinal, a coluna vertebral do governo?
O barulho maior se dá em torno da reforma da Previdência. Mas a questão
fiscal-tributária assola os Estados e não há indicações de saída para
equilibrar os entes federativos. O improviso está no ar. A principal embaixada
do Brasil no mundo, a dos Estados Unidos, não tem titular. O chanceler espera
que um conselheiro seu amigo seja promovido a embaixador para nomeá-lo ao
cargo.
O “índice de coisas estabanadas”, que
poderíamos designar doravante como ICE, tende a se expandir. E a esfacelar a
identidade do governo Bolsonaro. Não à toa, forma-se em nossa cognição a ideia
de que o Brasil tem um governo menor que sua grandeza exige.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação