Debates
A arte de não reagir: entre anticorpos e silêncios
Da Redação | 17 de setembro de 2025 - 01:24

Por Giovani Marino Favero
No início dos anos 2000 tive o privilégio de assistir às aulas de um dos últimos grandes mestres da ciência brasileira, o professor Nelson Vaz. Ele tinha um dom raro: falava de imunologia como quem conta uma boa história, sempre com pitadas de filosofia e provocações intelectuais que nos faziam sair da sala pensando por dias.
Um dos temas que mais me marcou foi o fenômeno da tolerância imunológica. Em poucas palavras, trata-se da capacidade do sistema imune de não atacar aquilo que é próprio — ou de, em certos casos, aprender a conviver de forma controlada com o que não representa ameaça. Esse equilíbrio é vital: sem tolerância, seríamos vítimas da autoimunidade; com excesso dela, seríamos alvos fáceis de qualquer invasor.
Nelson costumava brincar que a imunologia é uma ciência que precisa “roubar palavras da filosofia” para se explicar. As células não pensam, mas “reconhecem”. A imunidade inata lembra a “razão inata” da filosofia grega. E por aí vai. Mas o melhor mesmo era sua forma de ensinar: nunca despejava fórmulas prontas; instigava. “Ensinar é impossível, aprender é inevitável”, dizia, com aquele sorriso provocador.
Na mesma época, eu fazia experimentos no Instituto Butantan. Sempre que podia, acompanhava de longe, através do vidro, o tratador de serpentes em sua rotina. Um dia, numa conversa inesperada, ele me mostrou no braço a marca de uma mordida recente. Sorriu e, quase com naturalidade, comentou que já fazia anos que não tinha reação alguma: estava tolerante ao veneno. Aquilo me impressionou profundamente.
Hoje, ao revisitar mentalmente as aulas de Nelson Vaz, me pergunto: e se aplicássemos a lógica da imunologia à sociedade?
Na biologia, tolerância é virtude. Mas no convívio social, muitas vezes, ela se transforma em veneno. Toleramos abusos no ambiente de trabalho, injustiças políticas, desmandos cotidianos. Ficamos passivos, como linfócitos dessensibilizados diante de um antígeno que, depois de tantas agressões, já não desperta resposta. Aquilo que deveria causar indignação — a barbárie, a violência, o assédio, a perseguição, a corrupção — acaba sendo absorvido com naturalidade.
No mês passado, tive conhecimento de mais um caso em que um trabalhador foi punido sem justificativa plausível, após um julgamento que remete a práticas típicas de regimes autoritários. O que deveria causar indignação coletiva já não desperta nada além de suspiros de conformismo. Estamos anestesiados.
Na imunologia, quando o corpo para de reagir ao que é perigoso, abre-se espaço para doenças graves. Na sociedade, quando deixamos de reagir ao que fere a justiça, abrimos as portas para a normalização da barbárie.
Talvez a maior lição de Nelson Vaz vá além da ciência: é preciso saber quando tolerar e quando reagir. Nosso equilíbrio — como indivíduos e como sociedade — depende disso. E se a imunologia nos ensina algo, é que a tolerância em excesso pode adoecer tanto um organismo quanto uma comunidade inteira.
“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram
meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram
e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar...”
Martin Niemöller
Giovani Marino Favero é professor associado do Departamento de Biologia Geral da UEPG.