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Prisão domiciliar de Bolsonaro: medida legal, mas com controvérsia processual
Da Redação | 06 de agosto de 2025 - 00:27

Por Marcelo Aith
A decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, na
noite de 4 de agosto de 2025, decretando a prisão domiciliar do ex-presidente
Jair Bolsonaro, reverberou intensamente nos meios jurídico e político. A medida
decorreu do descumprimento de cautelares impostas desde 25 de julho, entre elas
a proibição de utilizar redes sociais — ainda que de forma indireta ou por
interpostas pessoas.
Durante manifestação ocorrida no dia 3, o senador Flávio
Bolsonaro divulgou vídeo em que o ex-presidente, mesmo impedido por decisão
judicial, discursava de forma incisiva a seus apoiadores, com críticas ao
Supremo Tribunal Federal (STF). O material foi publicado no Instagram,
reforçando o entendimento de que Bolsonaro teria conscientemente burlado a
medida judicial, valendo-se de terceiros para atingir o público.
Na decisão, o ministro Moraes foi categórico: “Agindo
ilicitamente, o réu Jair Messias Bolsonaro produziu dolosa e conscientemente
material pré-fabricado [...] para seus partidários continuarem a tentar coagir
o Supremo Tribunal Federal e obstruir a Justiça.” Afirmou ainda que, na mesma
data, o ex-presidente atendeu a uma videochamada do deputado federal Nikolas
Ferreira, o que foi utilizado para impulsionar discursos em suposta tentativa
de interferência indevida nos trabalhos da Corte.
Frente a esses atos, a consequência foi a decretação da
prisão domiciliar, acompanhada de medidas restritivas adicionais: uso
obrigatório de tornozeleira eletrônica, proibição de comunicação com outros
investigados e necessidade de autorização judicial para deixar sua residência.
A medida, ainda que menos gravosa que a prisão preventiva, impõe vigilância
intensa e limita a liberdade de maneira significativa.
Mas qual é a natureza jurídica dessa prisão?
A prisão domiciliar cautelar, prevista no artigo 318
do Código de Processo Penal, substitui a preventiva em casos específicos — como
idade avançada, doença grave ou situações de vulnerabilidade social. É um
instrumento legal que tem como finalidade garantir o andamento do processo sem
a necessidade de encarceramento em ambiente prisional, preservando, quando
possível, a dignidade do acusado.
Ainda que, no caso de Bolsonaro, não haja enquadramento
direto nos incisos do art. 318, a decisão encontra amparo na jurisprudência que
admite a domiciliar em substituição à preventiva como forma de assegurar
medidas judiciais, quando houver risco de reiteração delitiva ou obstrução da
Justiça.
Entretanto, a decisão suscita um ponto sensível: poderia o
ministro decretar de ofício essa medida?
Aqui reside a controvérsia jurídica mais relevante. Por um
lado, o descumprimento de cautelares impostas judicialmente está evidenciado —
o ex-presidente, ao utilizar meios indiretos para se manifestar nas redes
sociais, violou frontalmente a determinação do STF. Isso, por si só, pode
justificar a conversão das medidas diversas em prisão, nos termos do art. 282,
§ 4º, do CPP.
Por outro lado, surge a dúvida processual: seria necessária
uma provocação formal do Ministério Público ou da autoridade policial para que
o Judiciário convertesse a medida? O Código de Processo Penal não exige
expressamente esse requisito, mas parte da doutrina entende que, em nome do
sistema acusatório, o juiz não deve atuar de ofício em prejuízo da liberdade do
réu, devendo aguardar requerimento ministerial.
No caso em tela, aparentemente, não houve representação do
Ministério Público. Ainda assim, o entendimento majoritário no STF e em
Tribunais Superiores tem sido no sentido de que o juiz pode sim, ao constatar
violação de medidas cautelares, decretar a prisão de ofício, especialmente
quando a situação de flagrante afronta à ordem judicial representa risco à
instrução ou à integridade do processo.
É importante destacar que não se trata de uma prisão penal,
e sim cautelar, voltada à preservação da regularidade processual. Por isso, a
decisão deve sempre observar os princípios da proporcionalidade, necessidade e
adequação — o que, segundo o voto do ministro, estaria plenamente atendido,
diante da suposta tentativa deliberada do ex-presidente de contornar as
proibições impostas.
A prisão domiciliar também cumpre função simbólica
relevante: reforça que ninguém está acima das decisões judiciais, nem mesmo
quem já ocupou o mais alto cargo da República. Todavia, é preciso atentar para
os limites da atuação judicial e preservar, tanto quanto possível, a legalidade
estrita do processo penal.
Em suma, a prisão domiciliar de Bolsonaro parece encontrar
justificativa legal e fática diante do cenário apresentado. Ainda assim, a
ausência de provocação do Ministério Público pode alimentar questionamentos
quanto à forma do ato decisório, o que poderá ser objeto de recurso e debate
nas instâncias superiores.
A legitimidade da Justiça não se constrói apenas com
decisões firmes, mas também com estrita observância ao devido processo legal.
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global
pela Universidad de Salamanca - ESP. Mestre em Direito Penal pela
PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto
Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales
pela Universidad de Salamanca.