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‘Uma Birra e Um Goto’

Imagem ilustrativa da imagem ‘Uma Birra e Um Goto’

Por Giovani Marino Favero

Quando eu era pequeno, meus pais me obrigavam a escutar meu avô contar histórias, confesso que no início eu não gostava muito, mas fui pegando apreço e quando ele curvava o lábio em um sorriso maroto sabia que o que viria era algo que só quem já viveu intensamente consegue contar. Lembro uma vez quando, entre risos e suspiros, ele me contou sobre o jogo da mora — um duelo de gritos, números e reflexos, jogado com as mãos e com o coração, entre descendentes de italianos do Vêneto. Eu mesmo vi poucas partidas, já que o tempo, implacável, levou muitos dos mestres dessa arte. Mas meu avô dizia que o pai dele e o sogro, o nôno Andrea, eram verdadeiros craques.

— Era só ele levantar o dedo e gritar “sete!” que o adversário já se rendia — dizia ele, enquanto mexia o café e ria.

Mas o nôno Andrea não era famoso só por isso. Carregava um apelido saboroso como vinho da cantina: "Uma birra e um goto". Uma cerveja e um copo — porque o velho tinha o hábito de entrar num boteco, pedir uma cerveja, conversar, rir, pagar e ir embora para o próximo. Diziam que ele irrigava os caminhos entre os bares com tanto entusiasmo que o rio Uruguai deve parte de seu volume às passagens desse andarilho bem-humorado. “Pisciare”, dizia o avô entre gargalhadas — um verbo que eu demorei a entender, mas que o riso dele já explicava por si.

No entanto, nem tudo era festa. Tenho guardado até hoje o salvo-conduto de meu avô, um papel amarelado pelo tempo, mas que pesa como chumbo na memória da nossa história. Durante a Segunda Guerra Mundial, os descendentes de italianos, como ele, passaram a viver sob suspeita. Bastava falar em italiano para se tornar um inimigo em potencial.

O nôno Andrea, aliás, certa vez foi pego no meio de uma partida de mora. No calor da disputa, gritou em dialeto — um crime, à época. Foi levado à delegacia, como se carregar uma língua na boca fosse o mesmo que portar uma arma. Minha avó, mulher de fibra, não esperou explicações. Foi até a delegacia, olhos faiscando, mãos firmes na cintura. Não há registro se ela bateu na mesa ou no delegado, mas o fato é que o campeão de mora voltou para casa naquela noite.

Era 1942. O Brasil acabava de entrar na guerra e a repressão foi feroz: livros apreendidos, jornais queimados, tradições caladas. Os imigrantes, que já haviam sofrido com a travessia do oceano, com o solo árido, com a língua difícil e a saudade interminável, agora precisavam sufocar também sua cultura para provar que eram brasileiros.

Ainda assim, em meio à dor, havia cartas. Os jogos de escopa — ou escova, na versão mais gauchesca — sobreviviam como pequenas ilhas de alegria em meio à tempestade. A escopa é simples, mas exige cálculo, astúcia e cumplicidade. Jogava-se com cartas na mão e risadas na mesa. Formar uma vaza, atingir os 15 pontos com exatidão, era uma pequena vitória. E fazer uma escopa — recolher todas as cartas da mesa — era quase um grito de resistência: “ainda estamos aqui”.

Hoje, quando vejo um baralho surrado ou escuto alguém falar em sotaque cantado, penso no vô Marino, na vó Maria,  no nôno Andrea, na birra, no goto, no salvo-conduto, nas escopas e nas moras. Penso na força de quem carregou sua cultura nas costas e no coração, mesmo quando o mundo dizia que era melhor esquecê-la.

Penso, enfim, que há histórias que resistem como escopas bem jogadas: simples na forma, mas imbatíveis no valor.

Giovani Marino Favero é professor associado do Departamento de Biologia Geral da UEPG.

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