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Maé da cuíca: poeta e sambista
Da Redação | 13 de fevereiro de 2015 - 04:08
Tempos de Carnaval, tempo de recordar de Maé da Cuíca (1927-2012). Dias para cantarolar músicas como as que Maé compôs e interpretou. Época para contar a história do ponta-grossense que fundou a primeira escola de samba da capital do Paraná.
A obra e a vida de “Maé da Cuíca” (Ismael Cordeiro) são patrimônio da cultura popular, em parte por instalar uma república do samba numa Curitiba movimentada por outras influências musicais. Em 1946, ele fundou a Colorado – escola que liderou por uns 45 anos e à qual deu a fama de ter “bateria nota 10”. Em 1949, inovaria com a apresentação de um samba autoral na avenida.
Cartola, Nelson Caquinho e Carlos Cachaça conheceram Maé durante um concurso de sambas na Mangueira. Por aventuras como essa e por ser ativo até o fim da vida, Maé da Cuíca foi requisitado por documentaristas, jornalistas e acadêmicos como se ele próprio fosse a resistência da poesia e do samba diante do cinismo do século XXI. Era quando ele sacava da memória a seguinte canção:
“Da Princesa dos Campos, / ainda pequeno, eu aqui cheguei //.
Fui morar na Vila Tassi, / onde minha infância passei //.
Vivi no meio de bamba, / onde fazer samba era muito natural //.
Foi lá que eu fundei / a primeira escola do nosso Carnaval.”
Sem melodia para acompanhar a letra, só nos restam pistas de por que o artista não voltaria a sua terra natal. Falta contar que, quando Máe tinha seus quatro anos, o pai dele trabalhava numa estação da R.F.F.S.A. próxima a Paranaguá. Num final de ano, a família foi a uma festa e o garoto foi vítima de uma intensa cólica após lhe servirem um cálice de licor. Acabou internado e deslocado a Curitiba. Enquanto era tratado, o pai conseguira transferência para a capital.
O novo lar ficava na vila Tassi. Era uma comunidade à beira da linha do trem, onde viviam muitos ferroviários cuja maior diversão era fazer samba. O ponto de encontro deles ficava sob três eucaliptos e ao lado de um poço. Toda tarde de verão havia música e a vizinhança se reunia. Quem era de outras regiões mantinha a distância. Marcava o ritmo com o pé, mas do lado de lá dos trilhos. Não se aproximava pela desconfiança de que a vila fosse um covil da malandragem.
No Carnaval de 1945, os sambistas vestiram umas camisas de futebol, empunharam os instrumentos e tomaram o rumo do Centro. Já que os curiosos nunca tinham coragem de chegar na vila, o jeito era os batuqueiros fazerem o caminho inverso e mostrarem aquilo que sabiam à cidade inteira. Assim fizeram. A única precaução foi diminuir o volume da bateria quando passaram na frente do batalhão da polícia.
Passado o medo da censura, os ritmistas voltaram a esquentar o couro dos tambores. A multidão da XV de Novembro escutou a percussão e correu à rua paralela para cortejar a novidade. A aclamação era visível pela agitação do público, que tornaria o dia um baú de causos. Tamanho sucesso animou Maé. No ano seguinte, ele registraria a “Colorado” em cartório – com tudo o que ela precisava: estatuto, diretoria, surdo e cavaco.
Um fragmento da trajetória de Maé ajuda a entender o seu legado e porque ele foi o homenageado do Carnaval 2013, em Curitiba, e porque é lembrado a cada encontro do Samba do Compositor Paranaense durante o samba de abertura, quando é apresentado como um mestre. Em suporte audiovisual, o sambista rendeu o documentário “Maé da Cuíca, Vila Tassi e a Bateria Boca Negra”, de Nivaldo Lopes e Eduardo Prante (2014), e estreou a série “Retratos do Samba do Paraná” como personagem-tema de produção da e-Paraná (Rádio e TV Educativa do PR).
Ismael Cordeiro, o “Maé da Cuíca”, nunca questionou se no Paraná havia samba – ele o vivia. A sua trajetória inspira pelo talento, disciplina e ousadia. Em trilho paralelo, ela serve para nos perguntar do samba que havia nos arredores da ferrovia da Princesa dos Campos – ambiente semelhante àquele que levou um ponta-grossense a fundar a primeira escola de samba de Curitiba.
Ben-Hur Demeneck
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*Autor é jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação (ECA-USP).