Debates
Neocalvinismo: a nova teologia do governo Bolsonaro?
Da Redação | 05 de agosto de 2022 - 00:22
Por Tiago de Melo Novais
Parecia improvável que depois do pentecostalismo e o
neopentecostalismo haveria outra vertente cristã que ganharia destaque fora dos
âmbitos religiosos no Brasil. Por bem ou por mal, a ala reformada (calvinista)
brasileira, e mais especificamente a tradição neocalvinista, tem sido associada
até mesmo ao governo de Bolsonaro.
Por não pressupor que o leitor saiba do que se trata,
explico. Mas começo pela negativa: o Neocalvinismo não é o ressurgimento de uma
teologia de corte calvinista, que, quando muito, afeta o que se entende sobre o
caminho da salvação do crente. É uma tradição intelectual cristã específica,
que nasce na Holanda e que surgiu como reação ao enfraquecimento da religião
causado pelas mudanças vindas da Filosofia Moderna e da Revolução Francesa. Seu
precursor foi um teólogo reformado, professor e político, chamado Abraham
Kuyper, figura multifacetada e controversa, o qual chegou a ocupar o cargo de
Primeiro-ministro da Holanda. Além dele, outros deram continuidade ao que se
tornou uma tradição intelectual.
Sem rodeios, suas principais ideias se resumem na proposta
de que o cristianismo é melhor entendido quando promove a integração da fé com
os outros aspectos da vida e da sociedade – inclusive aqueles em que a fé já
não é mais tão bem-vinda, como a cultura e política. No Brasil, o
Neocalvinismo não prosperou até pouquíssimo tempo atrás, quando se pôde
identificar um esforço editorial de tradução de obras dos seus autores e
disseminação das suas ideias.
Diante disso, alguém poderia indagar o motivo que torna essa
vertente cristã sequer digna de menção, como tem ocorrido até mesmo em jornais
de âmbito nacional. Ao meu ver, a razão é, antes de tudo, uma associação
equivocada. Gostaria de explicar através de duas observações que dizem respeito
ao nosso contexto social e político, e por isso, as considero importantes tanto
para o leitor cristão, quanto não cristão.
Primeiro, embora o Neocalvinismo seja uma tradição ainda
pouco conhecida por aqui, seu nome facilmente conduz a erros. Um deles tem
ligação direta com o governo Bolsonaro, pois altos cargos do executivo e
judiciário foram ocupados por pastores presbiterianos, reconhecidamente
calvinistas. Cito alguns: André Mendonça, ex-AGU e agora Ministro do STF,
Milton Ribeiro no Ministério da Educação e Benedito Guimarães Aguiar Neto na
CAPES.
Após a ditadura, a confluência dos calvinistas com o governo
e a política nunca foi tão grande no país, o que naturalmente coloca em
suspeição uma parcela até então inexpressiva dos protestantes. Nesse sentido,
parece inegável um alinhamento ideológico de alguns calvinistas com o
bolsonarismo, o que não é motivo suficiente para transferir a associação para o
campo Neocalvinista (nem calvinista como um todo). Não só isso. Por não possuir
uma denominação religiosa ou instituição política no Brasil, a tradição
neocalvinista é usualmente identificada sem muito rigor com qualquer movimento
que compartilhe semelhanças, inclusive terminológicas.
Segundo, as ideias neocalvinistas dificultam sua rotulação
em termos políticos. É constantemente interpretado por seus sucessores de
diferentes modos, seja mais à esquerda ou à direita. Para os progressistas, o
Neocalvinismo é lido como uma potência para promover o pluralismo religioso e o
engajamento das religiões na esfera pública.
Para os conservadores, é entendido como uma força de
sofisticação intelectual para manter a tradição cristã em um tempo avesso à fé.
Então, até certo ponto, é correto afirmar que a tradição possui afinidade com o
senso moral de governos conservadores, o que, por sua vez, não é o mesmo que
afirmar uma correspondência entre o reacionarismo do governo Bolsonaro e o
Neocalvinismo, por exemplo. Mesmo com suas muitas faces possíveis, alguns
limites se impõem em nome da coerência.
Concluo com um convite: que o leitor amplie o conhecimento
do que ainda é desconhecido, só assim um texto como este (que desfaz a associação
equivocada) não necessitará parecer uma defesa, exceto da honestidade
intelectual.
*Tiago de Melo Novais é teólogo, mestre e doutorando em
Ciências da Religião e autor da Editora Mundo Cristão.