Debates
Auscwitzel?
Da Redação | 27 de agosto de 2019 - 02:34
Por Gaudêncio Torquato
Cena da semana: um saltitante e sorridente governador, dando
murros no ar sobre a ponte Rio-Niterói, comemorando o abate do jovem Willian
Augusto da Silva, de 20 anos, sequestrador de um ônibus com 39 passageiros, por
um sniper escondido em cima de um caminhão de bombeiros. O ex-juiz Wilson Witzel, agora na condição de
mandatário-mor do Rio de Janeiro, vibrava com a tragédia que chegara ao fim,
convencido de que a orientação que deu para a segurança pública é correta:
“mirar na cabecinha e... fogo... matar o bandido! Para não errar”.
Deu certo. Esgotados todos os recursos para a dissuasão do
sequestrador, a alternativa que restava era o tiro. No caso, seis tiros. A
imagem de sua Excelência, esbanjando alegria e correndo na ponte, ganhou
espaços midiáticos pela extravagância da performance. Puro marketing. Por mais
que se justifique a ação policial que culminou com o episódio, comemorar a
morte de um sequestrador é gesto inapropriado para quem devia conservar (ou
não?) traços da nobre missão de administrar a justiça. Witzel deu demonstração
que está mais para Rambo do que para ex-juiz.
A estampa de violência que emoldura sua figura faz com que
um dos maiores juristas do país, o desembargador e professor de Direito Penal
Walter Maierovitch, lembre o horror de Auschwitz, onde os nazistas mataram 1,3
milhão de pessoas em seu maior campo de concentração, dentre as quais cerca de
1 milhão de homens, mulheres e crianças judias. Pergunta ele: o populista
Witzel ou Auscwitzel?
O Rio de Janeiro mais parece uma praça de guerra. Os dados
dão conta de que no primeiro trimestre deste ano, 434 pessoas foram mortas por
intervenção policial. Média de sete óbitos por dia. Foi o maior número desde
1998. O fato é que a política de segurança pública, nesses estranhos tempos, se
guia pelo mote: “matar ou matar. Bandido bom é bandido morto”. A doutrina,
encampada pelo presidente da República, simpático a medidas como liberação do
porte e compra de armas, desce como gigantesca cortina de sangue sobre o
território, expandindo milícias, intensificando as agências funerárias, abrindo
portões dos cemitérios.
Foram 65.602 homicídios no ano retrasado, aumento de 4,2% em
relação ao ano anterior e, o mais preocupante, um número recorde que equivale a
31,6 mortes para cada 100 mil habitantes - mais do dobro, por exemplo, da taxa
de homicídios do Iraque, segundo estatísticas mais recentes da OMS, a
Organização Mundial da Saúde. A entidade considera epidêmicas taxas de
homicídio superiores a 10 a cada 100 mil habitantes.
De cinco doentes que baixam nos hospitais brasileiros, pelo
menos um é vítima da “guerra civil” que mata três vezes mais que a violência
nos Estados Unidos e mais gente que os mortos em conflitos étnicos. Em 30 anos,
o número de vítimas fatais chega a mais de um milhão, bem mais que os 750 mil
vitimados durante todo o período colonial da guerra de Angola.
Nas prisões-depósito, milhares de presos germinam novas
formas de violência, enquanto as gavetas se entopem com milhares de mandados de
prisão, envolvendo, no mínimo, outros milhares de bandidos soltos nas ruas,
enquanto rebeliões se expandem em penitenciárias.
A brutalidade jorra em proporção geométrica e as paliativas
soluções governamentais - melhoria e ampliação do sistema penitenciário,
reforço e reaparelhamento das polícias - estão longe de um crescimento em
proporção aritmética. Os cinturões metropolitanos, já saturados de lixões que
ofertam um banquete pantagruélico para urubus, crianças e mães famintas, são
também palco para a exibição de corpos chacinados em decomposição.
O Brasil, é triste, está se tornando um dos maiores
assassinos da humanidade. Pior: a violência, de tão desalmada, aumenta a
insegurança.
Sem ânimo, emoções envenenadas pelo vírus da angústia, os
cidadãos entram no limbo catatônico. E assim o mais rico país do mundo em
recursos biológicos está se transformando no mais fértil país do mundo em
registros necrológicos.
Nessa paisagem desoladora, emerge a figura saltitante do governador exibindo a estética desses tempos macabros. E onde está a prudência do juiz que Bacon tão bem descreveu? "Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspetos do que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza".
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP,
consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato