Debates
A besta está presente entre nós
Da Redação | 04 de maio de 2019 - 01:35
Por Adrian Clarindo
Na sexta-série, nossa professora de
português mencionou, por alguma razão, a noite anterior dela. Ela havia visto o
filme Don Juan de Marco, e, ao final, revelou, rapidamente, que tinha tido uma
crise de choro. E continuou a falar sobre relações do cinema com o conteúdo.
Ainda que nas escolas públicas do Brasil, infelizmente, pouca gente preste atenção
nos professores, eu não sei o porquê isto nunca me saiu da cabeça. Depois de
muitos anos, e me tornado também professor, venho agora a refletir sobre a
razão daquela professora ter chorado no final de Don Juan de Marco, e ainda
mais intrigante, sobre a razão de ela ter confessado o fato, ainda que num
estalo de palavras, a uma sexta-série barulhenta.
Aquela mesma sexta-série ficou sabendo que
uma outra professora chorava em sala. Havia uma gana de maioria dos alunos para,
então, fazê-la chorar. A conversa, a cadeira jogada, o prazer daquela turma ao
se alimentar da emoção da confusão, com os olhos atentos até o clímax: a
explosão em lágrimas da professora que só nos queria ensinar geografia. Outro
professor, o de matemática, ficava nervoso em sala e nos dava longos sermões
para depois apagar o quadro de um jeito muito estranho, com tremeliques e
vagarosamente como se tivesse rápidos espasmos no braço. Todos estes
professores estavam mostrando as suas circunstâncias. Forçosamente, talvez,
saindo dos seus cargos para deslizarem a serem os humanos que eram, bem na
nossa frente. Era difícil notar isso. Quando a gente vai crescendo, e crescer é
aprender a se comportar em público, os cargos, os números, as posições sociais
acabam por virar o que a gente é. E facilmente caímos numa ideia de que o outro
é simplesmente a sua função. O garçom é só “o garçom”. O cliente é só “o
cliente”. E como num teatro, em que não se conhece ninguém, fica fácil de sair
por aí odiando quem seja que não tenha, por um segundo, te servido
apropriadamente.
A professora da sexta-série devia ter
muitos motivos para chorar vendo filmes românticos, e por vezes não tinha
ninguém para falar sobre. Assim como o de matemática, assim como a de
geografia, assim como todos. A atenção que todos queremos na vida é uma coisa
difícil de mensurar. “O que falta é incalculável”, eu li no Eclesiastes. Nossa
sociedade, que vive tanto de termos relativos ao mercado como capital
financeiro ou capital cultural, parece ter problemas em perceber o possível e
infame termo “capital emocional”. A quantia de emoções que trocamos no curso de
tudo é vezes injusta. O montante de atenção dada vezes não é o montante
recebido. Os trocados de simpatia que recebiam aqueles professores das cruéis
turmas em que estudei, por exemplo, não pagavam nem metade do salário mínimo de
atenções que algum cidadão precisava. Aqueles professores eram pobres de amor
recebido, vivendo sempre em favelas emocionais. O que não era diferente do
outro lado. Os alunos também vezes estavam com a geladeira vazia de carinho. E
o que acontecia ali naquela escola pública era um certo adoecimento geral. Professores
doentes dos alunos. Alunos doentes dos professores.
Eu jamais retiro a crueldade do caráter das
pessoas. Vezes meus colegas de classe foram simplesmente inconsequentes,
assassinos momentâneos de aulas preparadas. Mas há de se perscrutar os porquês.
Os porquês dos atos das pessoas todas são respostas para perguntas raramente
feitas. É simplesmente mais fácil e rápido não só julgar, mas condenar todo ato
que se achar repulsivo ou decepcionante. Fazer o esforço para a complexidade
envolta na cena da professora chorando em sala, ou dos alunos zombando da cena,
é simplesmente difícil. É difícil porque toca não na casca fina da gente, a
casca que odeia ou ama automaticamente as coisas e as esquece, mas, sim, se
afunda dentro da consciência viva. Contemplar as pessoas na complexidade que
são, contemplar a nós mesmos na complexidade que somos, é, no, mínimo, também
complexo. E todas estas coisas, estas pessoas, estão envoltas ao advento da
atenção. Prestar a atenção é um ato de amor. É a humanidade pulsando de viva.
Principalmente hoje em dia com tantas distrações que nos cercam. E é este o
lado a ser trabalhado para com os outros, para com a gente. O contrário é a
besta. Seja a besta o que for que você queira que seja. A besta se alimenta dos
pratos de rancores e do musgo que cresce nos cantos das paredes das almas por
acaso cheias de negações. A besta caminha entre nós e cresce no silêncio do
ódio e bebe do líquido do que nos divide. A besta se embala na tua dor que é
quase fingida e a transforma num pântano infeliz de dores de verdade. A besta
devora mesquinharias, lambe as angústias, sobrevive da picuinha e do
constrangimento. A besta mora na casa da histeria e da arrogância. A besta é o
freio que te impede de ser o que sonha ser. A besta é o eco do desamor. A besta
é o parasita dos corações. A besta almoça palavras ruins sobre o alheio, a
besta almoça… e quem dá de comer na boca da barriga da besta é unicamente você.
E talvez seja simples vencer a besta: basta ouvir os professores que choram no fim dos filmes românticos.
Adrian Clarindo é professor e colaborador do JM