Debates
Qual o papel do professor?
Da Redação | 10 de outubro de 2018 - 02:07
Por Daniel Medeiros
Recordo-me da primeira mão levantada na minha aula. Isso foi
há trinta anos. Eu falava sobre o Egito e não sabia mais que um punhado de
informações decoradas. Um aluno no fundo da sala levantou a mão no momento em
que eu descrevia as fases da evolução política do Egito Antigo: Antigo
Império, Médio Império, Novo Império, Renascimento Saíta....pois não? Meu
coração se acelerou. E se ele me perguntasse sobre algum faraó desse período
saíta que eu sequer sabia por que se chamava assim? (Hoje sei que se relaciona
à capital estabelecida em Saís, neste período, como antes havia sido em Tebas,
por exemplo). Olhei fixamente para ele e repeti: pois não? E ele
disparou: Professor, o que o senhor sabe sobre os satélites?
Foi um susto e, ao mesmo tempo, um alívio. Saís, satélite,
algum mecanismo de associação disparou na mente do meu aluno distraído e,
tomado pela súbita dúvida, perguntou-me. Não me recordo o que respondi, mas,
por muitos anos, esquecido de mim e da minha fragilidade, usei esta história
como um exemplo da falta de preparo dos estudantes. Não percebia que meus
esquemas de “Antigo Império, Médio Império, etc.” não faziam o menor sentido
para aqueles jovens e adultos de Supletivo que, cansados de seus trabalhos, iam
para a aula em busca de um diploma exigido para seus sonhos da ascensão social.
Mas, de repente, em meio ao meu diálogo para surdos, com
meus esquemas mal decorados, uma palavra ecoou diferente aos ouvidos deste
jovem aluno e despertou uma velha (ou nova) curiosidade sobre satélites, este
objeto mágico – na verdade um artefato humano altamente sofisticado, fruto de
gerações de esforços e pensamentos – que transmite ondas de TV de um lado a
outro do mundo quase instantaneamente, permitindo-nos assistir a coisas da
China ou da Alemanha, ao vivo!
Onde ele teria ouvido falar de satélites? Na televisão? Em
alguma conversa de trabalho? Teria, ao ouvir falar, feito que cara? De
entendido? Ou já teria assumido antes esta dúvida, expondo-se corajosamente? E
o que eu – que até hoje não sei como os satélites funcionam, nem sei se é
correto chamar “ondas” de televisão e muito menos e como se dá a “mágica da
transmissão ao vivo – devo ter respondido? Provavelmente devo ter alertado ao
jovem aluno que a pergunta dele não guardava nenhuma relação com o conteúdo da
aula e que, portanto, não era pertinente, desmerecendo qualquer resposta. É,
devo ter cometido um crime destes.
Hoje reflito sobre essas memórias já desgastadas e percebo
como essa minha profissão precisa ser repensada. O que faz de um professor um
professor? Por que e em que medida ele pode ser útil? Um professor de jovens
como eu sou ainda hoje, o que sabe da juventude que o ouve? Que escolhas deve
fazer para exercer sua profissão frente a estes jovens do século XXI?
Sempre fui um decidido fã da cultura ocidental e dos
arquétipos que o Ocidente desenvolveu ao longo dos séculos, forjando
conceitos de primeira ordem, de caráter estruturante dos nossos discursos mais
solenes: “democracia”; “família”; “trabalho”; “futuro”. Sempre acreditei que
esses conceitos precisavam ser perpetuados e os “problemas” atuais estão
relacionados à nossa incapacidade de fazer valer uma escola que não ensina
esses conceitos básicos de nosso projeto civilizacional.
Não sei como acreditei tanto tempo nisso. Sei que,
felizmente, fui ficando velho e mais perspicaz. A escola é uma lugar de
vivência e não de ensino desses conceitos. Encerrar dezenas de jovens em
carteiras enfileiradas, exigir silêncio e ameaçar punições e lembrar provas com
poderes de aprovar ou não e depois escrever “democracia” no quadro é quase uma
piada de mau gosto. Mas é assim que fazemos, muitos, durante décadas.
A escola é espaço público de construção de valores
estruturantes para o mundo dos jovens e não mais para o nosso mundo que,
felizmente, morrerá conosco. Não temos uma função, no sentido de cumprir
um requisito para um fim. Temos um papel, de acompanhar, estimular,
encorajar a construção desses estatutos para esse mundo do qual nos
despediremos com lágrimas de felicidade ou de decepção.
Tudo o que chamamos de “alienação”, “despreparo”, “falta de
interesse” dos jovens é mais um estímulo que uma crítica. Para construírem esse
mundo novo, devem se alienar do nosso. Se se apegarem só ao que está aí, não
construirão um mundo novo, mas um remendo do velho. É fato que devem beber da
fonte que forja tudo, o passado, mas eles serão os ferreiros, não nós.
O despreparo é a condição da juventude. Lembram da nossa? Ou
somos uma geração que já sabia tudo na juventude? E éramos igualmente educados,
comportados, aplicados, formais e silenciosos como queremos que eles sejam? É
fato que podemos falar em escalas, mas não falamos disso. Dizemos: “A que ponto
chegou! Assim não dá. Essa geração não tem limites!” Mas qual é o ponto tolerável?
Qual limite é aceitável? E mesmo esse ponto tolerável, esse limite aceitável,
admitimos como um sinal de compreensão e abertura para o diálogo?
A falta de interesse, que é o desejo de estar junto, é
reflexo dessa nossa mania de exercer função voltada aos fins e acreditarmos que
os fins que os jovens devam almejar é o que nós determinamos e não o que eles
vão escolher. O mundo será deles e não nosso. E não há muito do que se orgulhar
do que estamos deixando para dizer a eles que devem “cuidar bem” da nossa
herança. Se ficarmos apenas nos quesitos “ar”, “árvore” e “água”, devemos, isto
sim, muito mais desculpas do que exigências.
Sempre associei minha profissão a um “sacrifício”. Horas e
horas em sala, fora as leituras, as provas, as atividades burocráticas. E as
reuniões pedagógicas! Nunca conheci um professor que me dissesse: “Uau, que
bacana a programação dessa semana pedagógica! Vamos aprender bastante, não?”.
Faço parte de uma classe de profissionais que se sente
sacrificada. A recompensa – o que é, ao mesmo tempo, incrível e paradoxal – vem
do carinho dos alunos, do sucesso deles, da lembrança da nossa existência na
vida deles. Deles, dos mesmos jovens que criticamos e acusamos de
“despreparados para o futuro”. Como se houvesse uma fórmula para o futuro. E
pior: como se soubéssemos que fórmula é essa!
Lamento, 30 anos depois, da resposta que não lembro ter dado
ao jovem do supletivo que queria saber sobre satélites. “Eu não sei responder
isso a você, meu jovem”. Mas eu deveria ter estimulado sua busca e ajudado a
buscar, indicando alguma referência. Meu papel é ajudar na construção das
pontes. Minha função não é a de levantar barreiras. A escola deve ser um lugar
de acolhimento. As provações, a vida já garante de sobra. Nosso papel é o de
compreender que interesse é construção árdua e paciente e que não se impõe;
compreender que autoridade é o que se reconhece em outro e não o que se
estabelece a priori; compreender que preparo é uma palavra que
morreremos tentando. E que futuro, ora, o futuro é a promessa que fazemos de
estarmos juntos em parte do caminho. Por isso educar é um compromisso, uma
promessa que se faz juntos. E o futuro passa a existir quando decidimos juntos
essa partilha do tempo e do esforço por construir pontes e traduções de um mundo
cujo sentido nós damos.
Esse é o papel da minha profissão. Professor. Com muita
satisfação.
Daniel Medeiros é doutor em Educação pela UFPR. Professor de História e Filosofia. Atualmente, é professor no Curso Positivo.