Debates
Reforma Tributária e Guerra Fiscal: expectativas e realidade
Da Redação | 18 de julho de 2025 - 01:37

Por Mirian Teresa Pascon
O Brasil está prestes a implementar uma das maiores mudanças
estruturais, de todos os tempos, em seu sistema tributário. A desacreditada
Reforma Tributária, debatida durante décadas, já tem sua fase inicial prevista
para 2026, com a aplicação da alíquota de 1% do IVA Dual, a ser abatida das
apurações de PIS/COFINS naquele ano, até a extinção definitiva dessas
contribuições, prevista para 2027.
Como é sabido, a tão aguardada Reforma concentrou-se, até o
momento, na tributação sobre o consumo, extinguindo o ICMS (estadual), o ISS
(municipal), o PIS/COFINS (federal), além do IPI. Esses tributos serão
gradualmente substituídos pelo novo sistema de IVA Dual, partilhado entre
União, Estados, Municípios e Distrito Federal, por meio da Contribuição sobre
Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e do Imposto sobre Bens e
Serviços (IBS), de competência estadual e municipal. Ambos incidirão, exclusivamente,
sobre o valor agregado, em operação única de arrecadação centralizada, com
posterior distribuição da receita.
Não por acaso, o tema tramitou por mais de trinta anos e
atravessou diversos governos até a aprovação da PEC 45/19, que culminou na
Emenda Constitucional 132/24. O início da regulamentação da Reforma se
formalizou com a publicação da Lei Complementar 214, em janeiro de 2025.
O Brasil, enquanto República Federativa, é estruturado pela
autonomia de seus entes: 26 Estados, mais de 5.600 Municípios e o Distrito
Federal. Essa configuração representa, na prática, o mesmo número de interesses
conflitantes em matéria de arrecadação, somados aos da União, razão pela qual é
possível perceber o desafio existente entre a Reforma idealizada e a Reforma
efetivamente possível de ser implementada.
Foi justamente no exercício dessa autonomia federativa que
se consolidou a chamada Guerra Fiscal: cada player federativo, com competência
tributária própria garantida pela Constituição, implementou políticas fiscais
voltadas — legítima e compreensivelmente — ao fomento de suas prioridades
locais. Para atrair investimentos e gerar empregos, passaram a conceder
isenções e benefícios fiscais que, embora essenciais regionalmente, causaram
distorções, desigualdade econômica e concorrência predatória no plano nacional.
Por outro lado, tais incentivos também impulsionaram o desenvolvimento em áreas
mais carentes.
A Reforma Tributária sobre o consumo altera, de maneira
profunda, as regras do jogo. O IBS será arrecadado no Estado e Município de
destino da operação, eliminando a ingerência direta dos entes federativos sobre
a destinação da arrecadação.
Embora prevista uma alíquota padrão para o IBS, ela não será
vinculativa, ou seja, cada Estado ou Município poderá fixar sua própria
alíquota. No entanto, em termos práticos, a alíquota efetiva sempre será aquela
do local de destino da operação, esvaziando a eficácia de políticas fiscais
locais para atração de empresas.
Para mitigar esses efeitos, a Reforma criou dois institutos
inéditos: o Comitê Gestor do IBS e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional
(FNDR).
O Comitê Gestor será responsável por toda a arrecadação,
fiscalização e distribuição das receitas aos entes federativos. O FNDR, por sua
vez, ficará encarregado da pesquisa, gestão e distribuição de recursos da União
para Estados e o Distrito Federal, com foco em fomentar atividades produtivas,
gerar empregos e promover o desenvolvimento regional, assumindo o papel que
hoje cabe aos benefícios fiscais na atração de investimentos.
O desafio é monumental. Já em 2026, o Comitê Gestor deverá
administrar cerca de R$ 600 milhões, com previsão de movimentar R$ 3,8 bilhões
até 2028, apenas para a estruturação de suas atividades. Com o encerramento do
período de transição e a extinção do ICMS em 2033, estima-se que o Comitê
movimentará R$ 1 trilhão por ano.
Apesar da reestruturação, a Reforma garantiu a manutenção da
carga tributária, sem previsão de aumento ou redução do montante arrecadado. No
entanto, assegurar a justa repartição da arrecadação do IBS dentro de um país
marcado pelo regionalismo exigirá mudanças profundas na cultura
político-administrativa nacional.
Do ponto de vista jurídico, vislumbra-se o fim da Guerra
Fiscal, já que, embora os entes federativos continuem livres para definir suas
alíquotas, o foco da arrecadação migrará para o local de destino da operação,
neutralizando o uso de incentivos fiscais como estratégia de atração de
investimentos.
Entretanto, sob a perspectiva administrativa e social, será
imperativo que tanto o Comitê Gestor do IBS quanto o FNDR, estruturas medulares
da Reforma Tributária, atuem com a projetada imparcialidade. Caso contrário, o
conflito tributário poderá migrar do campo jurídico para o político,
perpetuando a lógica de que “quem tem mais influência leva mais”, marca
histórica cultural da política brasileira.
O início já sinaliza dificuldades: durante a transição, a
repartição considerará a média da arrecadação histórica do ICMS entre 2024 e
2028, o que tem levado Estados a elevar alíquotas para garantir uma fatia maior
do bolo.
Para os contribuintes, a mudança trará impactos
significativos. A novo modelo de tributação no destino demandará reestruturação
comercial, revisão de contratos e reorganização operacional, especialmente para
empresas que se beneficiam de incentivos fiscais.
Embora, a longo prazo, toda a cadeia produtiva deva ser
impactada por ajustes, colocada em perspectiva, a Reforma deverá reduzir os
custos empresariais com o atual sistema tributário, considerado um dos mais
caóticos do mundo.
A expectativa é que o Brasil salte de um dos sistemas tributários mais complexos do planeta para um modelo mais moderno e eficiente, mais avançado até que o de muitos países que já utilizam o IVA, o que será fator de atração de investimentos estrangeiros. Porém, com uma carga tributária mantida em cerca de R$ 1,3 trilhão/ano apenas sobre o consumo, refletida na elevada alíquota padrão do IVA Dual, o país continuará entre os que mais tributam no mundo, o que segue como fator de desestímulo.
*Mirian Teresa Pascon é advogada e coordenadora do
Departamento Jurídico da Elebece Consultoria Tributária