Debates
Os riscos do homeschooling para a educação básica no Brasil
Da Redação | 27 de maio de 2022 - 00:03
Por Leandro Madureira
O homeschooling ou ensino domiciliar é uma modalidade que se
pretende aplicar na educação básica do Brasil. Hoje, o ensino é realizado no
ambiente escolar, dentro das escolas e dos colégios, em uma coparticipação de
responsabilidades entre União, Estado, Distrito Federal e Municípios. A União
tem competência para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional,
enquanto aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, além da própria
União, compete proporcionar a forma de acesso à educação. Assim, cada ente
federativo tem sua responsabilidade na administração desse ensino. E, apesar de
possuir uma série de problemas e dificuldades, sobretudo pela ausência de
investimento e falta de valorização dos profissionais de educação, o ensino
escolar cumpre muito mais do que função meramente de transmissão de
conhecimento.
O ensino escolar cumpre uma função cidadã, de formação do
aluno para a sociedade, tendo em vista que é nesse ambiente escolar que o aluno
exerce suas relações sociais iniciais. É dentro desse ambiente que as amizades
se estabelecem, que a criança, o adolescente, o jovem tem a capacidade de
exercer uma série de outras atividades que não adstritas à sala de aula e que
serão fundamentais para seu desenvolvimento enquanto pessoa, enquanto ser
humano, enquanto profissional no futuro.
É no ambiente escolar que se aprende a exercer a relação
social inicial pela troca de informações com os colegas, de informações com os
professores e professoras. Na relação que existe no âmbito interno da escola, o
aluno se prepara para enfrentar o mercado de trabalho no futuro, onde ele
também precisará lidar com pessoas, no seu ambiente de trabalho, também
precisará estabelecer relações de amizade, de hierarquia, de obediência e
disciplina.
O ambiente escolar traz uma formação humana que vai além do
conhecimento, vai além do ensino meramente burocrático, do ensino que tem
relação com conteúdo, pois permite de fato o desenvolvimento do aluno como
cidadão do futuro.
Já o ensino domiciliar é uma outra modalidade de relação com
o ensino. O ensino domiciliar aplicado na educação básica é realizado
eminentemente, ou pretende ser realizado eminentemente, dentro do ambiente
domiciliar. E esse tolhimento do convívio social tende a ser bastante
prejudicial para o aluno, para a criança que está em formação.
O ambiente domiciliar muitas vezes pode oferecer uma série
de riscos que o ambiente escolar elimina ou permite a identificação desses
riscos. Nós temos um quadro de violência contra a criança e contra o
adolescente no nosso país que é muito preocupante. A criança e o adolescente
são vítimas de violência de toda ordem, seja física, psicológica e sexual. Há
uma série de tipos de violências das quais as crianças e adolescentes são
vítimas, que, muitas vezes, só são identificadas no ambiente escolar. Os
professores, sobretudo na educação básica, possuem a competência de identificar
que o aluno sofreu algum tipo de abuso. E não nos deixemos enganar: a realidade
deixa claro que boa parte dos assediadores sexuais contra crianças e
adolescentes são pessoas que fazem parte de um convívio íntimo da família, seja
um tio, um padrinho, um primo. Não é incomum também identificarmos em nossas
redes sociais notícias de abusos cometidos por pessoas ainda mais próximas,
como padrastos, namorados, avôs, que deveriam zelar pela proteção das crianças
e adolescentes.
A comunidade escolar e o ensino presencial na educação
básica têm um papel fundamental de reconhecer e denunciar que a criança ou o
jovem está sendo vítima de algum tipo de violência. A criança vítima de abuso
pode ter alguma mudança de comportamento que permite que as pessoas que fazem
parte da comunidade escolar identifiquem o problema e deem o direcionamento
necessário junto aos conselhos tutelares e a segurança pública. A violência
domiciliar é de difícil evidência justamente porque relacionada a um contexto
protegido e inviolável, contra pessoas que estão em formação e que se veem
traumatizadas pelo cometimento do delito. Fora do ambiente escolar, essas
crianças ficarão ainda mais vulneráveis a uma realidade que se sobrepõe à
defesa daqueles que desejam instituir o ensino domiciliar.
O ambiente escolar também permite que, dentro de uma
realidade social cruel em que a fome e a miséria são presentes, o aluno realize
suas refeições básicas. Não é raro que o desemprego empurre as famílias a uma
realidade de pobreza alimentar e nutricional, que para crianças e adolescentes
que estão em formação pode gerar uma fragilidade da saúde ainda maior. A escola
e o ensino presencial permitem que o aluno realize uma ou mais refeições que,
para aquela pessoa, será a única de todo um dia.
O ensino domiciliar, por outro lado, poderá ser utilizado,
inclusive, para forçar essas crianças e adolescentes a realizarem atividade
profissional precoce. É que ausentes do ambiente escolar, eles poderão ser
incentivados a trabalhar, para ajudar no orçamento familiar. Se mesmo com a
escola presencial e obrigatória vemos as ruas repletas de crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade, exercendo venda informal nos
semáforos das grandes cidades, o ensino domiciliar favorecerá a utilização da
mão de obra infantil para o sustento da família.
A proposta do ensino domiciliar traz uma série de incertezas
e uma serie de riscos que precisam ser muito bem avaliadas no Senado. O texto
foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora segue para análise dos senadores e
senadoras.
A tendência é que o ensino domiciliar gere uma precarização
ainda maior da educação brasileira. O homeschooling faz parte de uma bandeira
defendida por uma corrente ideológica conservadora que pretende excluir essas
crianças do ambiente escolar. A principal alegação é a de que as crianças
possuem um ensino que não condiz com a educação promovida pela família, que
estão obtendo uma formação tendente a algum tipo de corrente ideológica, quando
na verdade o homeschooling é a expressão maior desse tipo da ideologização da
educação.
Portanto, é necessário que o Senado Federal, ao analisar
esse projeto, tenha um olhar muito atento, um olhar desconectado daquilo que
propaga o Governo Federal, um olhar desconectado das correntes conservadoras
que defendem o homeschooling e que possam fazer uma análise com o foco na
criança e na proteção integral da criança, que é uma determinação
constitucional. É essencial que os senadores percebam os riscos que o
homeschooling traz e percebam a dificuldade que seria a implantação de um
ensino domiciliar em um país tão complexo, tão cheio de dificuldades e de
diferenças sociais. O ensino escolar é a modalidade mais adequada para a
formação das crianças e dos adolescentes no Brasil e mudar esse rumo, neste
momento em que já estamos enxergando os prejuízos educacionais provocados pela
pandemia, seria um grande risco de colocar a educação brasileiro em um grande
abismo.
*Leandro Madureira é advogado, sócio do escritório Mauro
Menezes & Advogados, especialista em Direito Previdenciário e especialista
em Políticas Públicas, Infância, Juventude e Diversidade pela UNB