Debates
Homem-massa: cuidado para não se tornar um
Da Redação | 06 de janeiro de 2022 - 01:55
Por Jelson Oliveira
Esse não é um manual de instruções. Mas pode se tornar.
Quando o filósofo espanhol Ortega y Gasset escreveu o seu “A rebelião das
massas”, ele forneceu um diagnóstico de um dos eventos mais marcantes da
modernidade: o aparecimento de um tipo de pessoa (não raro reunida em um grupo)
que foi definida por ele como homem-massa (claro, também, mulher-massa, jovem-massa, idoso-massa
etc.). Para o filósofo, o perigo dos perigos vem à tona quando essa gente-massa assume
o protagonismo social. O resultado é o esfacelamento da ideia de nação e o
surgimento do caos social que ele chama de invertebração histórica.
O homem-massa corrói tudo ao redor, a começar pelos grandes
fundamentos da cultura. Esse tipo humano débil e vulnerável desfila seus
slogans ilusórios atirando para todos os lados, sem nenhum critério. Sua marca
é a inautenticidade e, por isso, ele centrifuga tudo que dele se aproxima, para
tornar tudo raso e sem caldo.
Acrítico, portador de falsas qualidades e vive sem
motivações. É um sujeito de direitos sem deveres, uma espécie de herdeiro que
desperdiça a herança, porque ele quer usufruir todas as vantagens da
civilização sem fazer nenhum esforço para conquistá-las ou garanti-las. Quer
usar os direitos sem ter nenhuma ideia de como foram conquistados e o que deve
ser feito para serem preservados. Por isso, ele não aceita as regras do jogo,
mas quer jogar. E quando o jogo não lhe agrada, ele rouba a bola, como um menino
mimado. Vive em busca de vantagens, comodidade e segurança, o que facilmente
leva à inércia. Seu mal maior é a inércia intelectual. Embora,
contraditoriamente, essa preguiça intelectual produz uma ação direta: ele vive
tendo o que dizer, opina sem reservas e tem sempre alguma tarefa para passar
para os outros, especialmente os governantes, enquanto ele mesmo se exime.
Critica todas as ações dos outros, odeia quem faz alguma coisa, critica quem
aparece e toma a liderança, enquanto ele mesmo se esconde na sombra, esperando
a hora de vir à luz com suas acusações. E prefere fazê-las em público, porque
assim ele passa a impressão enganosa de coragem e compromisso com a causa que
não é sua. E é isso que o torna tão perigoso, porque hoje ele conta com uma
ferramenta muito rápida e eficiente: as redes sociais. O homem-massa adora
postar todo tipo de opinião e o faz, fanaticamente, como quem cultiva as
pérolas mais preciosas. E não raro, esse fanatismo se transforma em ódio e
intolerância. Ele ataca a quem bem entender, espalha suas opiniões sem
critério, não aceita críticas e não vê nenhum limite. Ah, claro: com isso, ele
sempre conta com aplausos de seus correligionários, militantes da mesma falta
de causa, sucessores e sectários cujo comportamento é incentivado mutuamente. E
ele adora os demagogos, na presença dos quais ele se sente confortável, como
quem se religa à sua fonte original. É por isso que ele parece um religioso em
adoração ao seu deus.
O homem-massa vive, assim, sempre no exterior –
desconfia-se mesmo que ele não tenha um “dentro”. Tudo nele não parece passar
da superfície: suas ideias postiças parecem sem raiz, sua força vital se
abastece do rancor e da animosidade aos outros. Se o amor vincula, o ódio
do homem-massa dispersa, rompe conexões, cria inimizades, orienta-se
para fora. Seu ódio nasce de um medo e de uma preguiça diante da alteridade:
ele não se interessa realmente por ninguém e nem por si mesmo. Falta-lhe
intimidade, um eu que lhe seja próprio. Ele sempre parece estar fingindo ser
outro. Ele está sempre no fora de si, desumanizado, automatizado, vivendo como
função na grande engrenagem das coisas, sem saber disso e, pior, reivindicando
consciência plena. O homem-massa é risível.
A vida do homem-massa é uma pura ficção de outra
vida, uma representação falseada, uma tentativa de enfeitar sua feiura
horrorosa. Por isso, ele reivindica sempre um tipo de liberdade que, no fundo,
é irresponsabilidade: ele não sabe com que preencher o seu tempo livre, ele
teme a sua própria solidão, ele não tem projeto para si. Por isso, aprova
facilmente qualquer coisa e embarca em qualquer barco furado,
acriticamente.
A vida do homem-massa é a pobreza absoluta. Ele
desfila suas bandeiras desbotadas, amarradas na cintura e nas janelas, dando de
ombros para o significado mais profundo de palavras como humanidade, direitos
humanos, respeito, responsabilidade ou qualquer um desses conceitos que, para
ele, não têm nenhuma história e nenhuma importância. Ele aplaude a polícia que
matou dezenas, dizendo que os mortos não farão falta – mesmo sem ter nenhuma
informação sobre os assassinados. Ele nega o racismo e reivindica o racismo
reverso a favor de suas brancuras. Ele declara sua ojeriza aos gays mesmo
quando diz que respeita sua “opção” – tem até uns amigos homossexuais que ele
tolera. Quer queimar seu CO2 cotidiano e, para isso, nega as evidências do
aquecimento global. Ele briga nas rodas de família a favor de suas incoerências
e sempre reivindica o direito de dizer o que quiser, mesmo que isso cause
feridas em quem quer que seja.
O homem-massa não sabe que a vida precisa de
autenticidade. Ele não sabe que viver, como sugeriu o filósofo espanhol, é
fazer aquilo que ninguém pode fazer por nós e que isso demanda integridade,
projeto, senso de comunidade e, sobretudo, respeito e interesse pelos outros.
Ele não sabe que viver é uma revelação: não um contentar-se com o ser de agora,
mas um ir adiante, uma abertura e um descobrimento incessante de tudo que está
ao redor. O homem-massa, por isso, frequenta cavernas escuras, das quais
ele se recusa a sair. Na última vez que ele viu a luz da verdade, ele matou o
seu mensageiro.
*Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUCPR).