Debates
Os problemas agrários do Brasil foram resolvidos?
Da Redação | 25 de março de 2021 - 02:38
Por Guilherme Mazer
Como parte das atividades da 6ª Semana Social Brasileira
(SSB), fui convidado a fazer uma reflexão sobre as questões agrárias para
colaborar com o processo de mobilização e transformação social com vistas à
construção de um Projeto Popular para o Brasil, um dos objetivos principais do
evento. O artigo que segue é a síntese da minha contribuição.
Assim, para responder
a pergunta do título elaboramos uma reflexão a partir de quatro pontos
distintos, quais sejam, a concentração fundiária e suas desigualdades; a
crescente internacionalização da agricultura por meio do controle da tecnologia,
processamento, comercialização e produção; a insegurança alimentar promovida
pelas transformações recentes da dinâmica produtiva da agropecuária; e, por fim,
a persistência da violência atravessada pela exploração do trabalho e da
devastação ambiental como características do modelo agrário dos Campos Gerais.
Concentração fundiária
Sobre a concentração fundiária, recorro à minha dissertação
de mestrado que analisou a questão a partir da observação do avanço do
reflorestamento de pinus e eucalipto nas cidades que fazem parte do Território Caminhos
do Tibagi, que são Reserva, Imbaú, Ortigueira, Tamarana, Telêmaco Borba,
Tibagi, Figueira, Curiúva e Ventania. Em 2006 o Território Caminhos do Tibagi
tinha 10.115 estabelecimentos rurais, ao passo que 2017 constatou-se 8.347, uma
diminuição de 18%, sendo mais acentuada essa redução no extrato de
estabelecimentos de até 10 ha - 21%, e menos acentuada no extrato de
estabelecimentos acima de 200 ha - 5%. O estado do Paraná nesse período
registrou uma redução de 17,77% no número de estabelecimentos rurais.
Assim, a concentração fundiária não apenas persiste como se
aprofunda a cada dia nos últimos anos, mesmo nos períodos compreendidos pelos
governos progressistas do Partido dos Trabalhadores, resultado do avanço do
capitalismo na agricultura, com grandes propriedades absorvendo as pequenas
levando a uma série de desigualdades.
Na região dos Campos Gerais é significativo o efeito da
propaganda “o agro é pop”, que leva em conta majoritariamente a indústria do
papel, celulose e grãos, utilizando como justificativa o aumento do IDH –
Índice de Desenvolvimento Humano.
Ocorre que mesmo o pesquisador Amartya Sen, idealizador
desse índice e prêmio Nobel de Economia, sabia das limitações desse medidor
quando sobreposto a outros índices. Por exemplo, Telêmaco Borba, apesar de
apresentar um PIB – Produto Interno Bruto e IDH-M que transparecem prosperidade
econômica, em 2016 ganhou o título de cidade mais violenta do interior do
Paraná, descortinando a pobreza, exclusão e desigualdade social que impulsiona
a criminalidade.
O argumento de melhoria do IDH-M dos municípios é usado
pelos defensores do agronegócio na região, mas essa perspectiva não resiste a
uma observação mais atenta do IDH levando em conta a posição dos municípios, porque
o IDH subiu no Brasil todo nos últimos anos, mas a maior parte dos municípios integrantes
do Território perderam posição no ranking. O que demonstra que o modelo de
desenvolvimento rural da região pode não ser um fator relevante para a melhoria
da qualidade de vida dos habitantes da região.
Ainda que existam assentamentos da reforma agrária, aldeias
indígenas, quilombos, portanto territórios de resistência à concentração
fundiária, desde a decisão tomada nos anos em que o Brasil foi governado pelos
militares, de modernizar a agricultura a partir do latifúndio, agudizou a
concentração da terra.
A crescente internacionalização da agricultura por meio do
controle da tecnologia, processamento, comercialização e produção.
Cabe afirmar que essa aposta de modernização elevou os
índices de produtividade com avanços tecnológicos, mas se baseou fortemente na
indústria internacional, porquanto o Brasil não foi capaz de criar uma
indústria nacional forte de insumos, muito menos de transformação.
Quando olhamos para a cidade de Ponta Grossa, percebemos
facilmente a prevalência de multinacionais como Bunge, Louis Dreyfus, Cargil no
setor agroindustrial. Inclusive, importantes empresas nacionais de produção de
insumos e tecnologia (como a FT sementes, vendida em 1996 para Monsanto) foram
compradas pelas gigantes mundiais do agro, reafirmando um modelo concentrador
de recursos e tecnologia.
A Klabin, que recebe inúmeros incentivos desde os governos
de Getúlio Vargas e Manoel Ribas (Paraná), mantém o controle do capital nas
mãos da família, mas é refém dos “humores” do mercado de celulose, controlado,
em boa medida, pela China e países nórdicos.
Isso é muito presente em nossa região, por mais que a elite
agrária tenha o domínio da terra em si, o controle e a territorialização é do
agro, não é decisivamente brasileiro, e não é a burguesia nacional que comanda,
e muito menos têm qualquer influência sobre os rumos tomados pelo segmento dos
trabalhadores rurais mais pobres. Dessa forma, a economia regional é fortemente
desterritorializada ou deslocalizada, cujo resultado é que grande parte dos
excedentes econômicos gerados na região são carreados para outras regiões do
Brasil e aos acionistas nacionais e globais das grandes corporações multinacionais.
Nesse contexto, nem a burguesia nacional nem a elite agrária
foram capazes de criar uma indústria nacional de insumos e transformação, deixando
o país cada vez mais dependente das commodities primárias. Se levarmos em conta
todo o peso que o agronegócio tem no Produto Interno Bruto, mas comparando com
o que é transferido em recursos financeiros a esse setor, com as isenções
fiscais, subsídios na aquisição de tecnologia e do óleo diesel, entre outros
benefícios, veremos que esse modelo custa muito caro para o Brasil na medida
que dá retorno insuficiente na geração de mão de obra, na produção e na distribuição
da riqueza, que fica concentrada nas mãos do capital internacional.
Insegurança alimentar promovida pelas transformações
recentes da dinâmica produtiva da agropecuária
O País passou por transformações importantes se levarmos em
conta o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o fortalecimento do Programa
Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), que incentivou a agricultura familiar
comprando os produtos desses agricultores e distribuindo para escolas,
hospitais e outros por meio dos programas de assistência social.
No entanto, no segundo governo da ex-presidente Dilma
Roussef, os recursos escassearam e o PAA teve um duro golpe através da Operação
Agro-Fantasma na região, que desmontou as organizações de pequenos produtores
fazendo acusações que depois se mostraram absolutamente infundadas. Por fim, os
agricultores foram absolvidos, mas o estrago já estava feito e de certa forma
foi irreversível.
Ocorre que o agronegócio não consegue dar conta da demanda
por segurança alimentar. Se analisarmos os índices inflacionários de maneira
geral, percebemos a constante evolução de preços dos alimentos, mesmo com todo
aumento na produtividade do agronegócio. Dessa forma, temos uma contradição insanável que demonstra, de
forma inegável, que o agronegócio não tem como objetivo fundamental resolver o
problema da insegurança alimentar no Brasil.
A cidade de Telêmaco Borba é um exemplo claro dos efeitos do
domínio do território pelo agronegócio, pois quando a propriedade da terra está
extremamente concentrada, bastam pequenas crises, como uma greve de
caminhoneiros, para que se gere insegurança alimentar por falta de diversidade de
alimentos disponíveis à população. Portanto, o agronegócio gera muita riqueza nos
municípios, mas ela não se reverte em qualidade de vida para as pessoas, porque
a maior parte da riqueza gerada transforma-se em aplicações financeiras,
remuneração dos acionistas, reinvestimentos de capitais, beneficiando atores
que residem em outras cidades e regiões. Inclusive, como as plantas industriais
são capital-intensivas a geração relativa de empregos é pequena em termos do
valor dos capitais investidos.
Estima-se que 70% da produção de alimentação diversificada
que chega efetivamente à mesa dos brasileiros é produzida pelos pequenos
estabelecimentos agrícolas. Se a concentração da terra continuar se elevando
indefinidamente, o problema da insegurança alimentar vai persistir,
principalmente porque a população urbana cresce mais do que a rural neste
modelo que não valoriza a pequena produção.
Violência atravessada pela exploração do trabalho e da
devastação ambiental
Por último, a persistência da violência, da exploração do
trabalho e da devastação ambiental resultam em constante aumento do número de
mortes e perseguição às lideranças de movimentos do campo.
No Paraná, o sofrimento é grande entre os quilombolas do
Vale do Ribeira e os indígenas no Leste do Estado, inclusive com mortes. Nos
Campos Gerais há muita insegurança nos acampamentos, e até em assentamentos da
reforma agrária, com sucessivas ações de despejo por parte do Estado. Há também
um tipo de violência velada, como no Centro Sul, dominado pelas fumageiras,
que, num primeiro momento incentivam a produção, mas na hora da compra
selecionam poucos produtores.
De outra maneira, um tipo de violência simbólica também
acontece quando o agronegócio avança sobre nascentes, quando o reflorestamento
lança faixas de sombra, tirando o direito de pequenos agricultores à luz e à
água, ao impedir, através do risco de contaminação por transgênicos, que se
garanta a biodiversidade com plantações de milho crioulo, produtos
agroecológicos, entre outras produções alternativas.
São essas violências que passam até pelo registro de
trabalho escravo na Região dos Campos Gerais e pela devastação ambiental
causada pela monocultura que destrói a possibilidade de preservação da
biodiversidade com utilização de grande quantidade de agrotóxicos.
Cabe aqui lembrar que a propaganda para o aumento das
culturas transgênicas trazia em seu contexto a menor utilização de agrotóxicos.
No entanto, há estudos feitos por pesquisadores da Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab) que mostram aumento exponencial na utilização de produtos
tóxicos nas lavouras, tanto em quantidade quanto em área cultivada, além de
pesquisas recentes feitas na Universidade Estadual de Ponta Grossa que mostram
a presença de agrotóxicos perigosos e já banidos pela legislação no corpo de
peixes e alevinos, de rios e represas da região, como a do Alagados, que é
fundamental para o abastecimento de água da população de Ponta Grossa.
É um modelo de agricultura com custos ambientais e sociais
bastante significativos, por mais que não existam no Paraná os famosos
“correntões” – técnica de desmatamento devastadora usada para derrubada massiva
de vegetação nativa - como há no Cerrado, pois contamina a água, não conserva
biodiversidade, não distribui riqueza e não permite que a terra cumpra sua
função social.
Por isso, a reforma agrária ainda faz todo o sentido,
principalmente se levarmos a cabo a matriz idealizada pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, que prioriza a produção de alimento saudável,
preservação do meio ambiente e a garantia da sucessão na propriedade da terra,
dando oportunidade para os jovens gerarem renda e terem a possibilidade permanecer
no campo e, mesmo assim, viverem com dignidade. A distribuição igualitária da terra não é
apenas importante em termos econômicos, mas garante mais saúde para a
população, revertendo a insegurança alimentar, controlando o domínio do
território a partir das necessidades de água e de comida das pessoas.
Por fim, a reforma agrária tem demonstrado ser um fator decisivo para o desenvolvimento local porque nas últimas cinco décadas centenas de municípios brasileiros e paranaenses sofreram uma significativa involução econômica com perda de população e de atividades econômica. Alguns estudos têm demonstrado, de forma inequívoca, que assentamentos rurais com centenas e milhares de famílias em municípios estagnados provocam um dinamismo econômico importante, como o retorno de atividades econômicas que são geradas pelas demandas de consumo em geral, provocadas pela recuperação populacional do município, resultando no ressurgimento de uma pequena economia, mas fortemente territorializada. A grande economia desterritorializada precisa dividir as riquezas geradas nos municípios com as populações que continuam residindo nas regiões tipicamente rurais, se não for por solidariedade, que pelo menos o faça por entender que uma economia sustentada depende de uma menor desigualdade de renda, com um mercado interno mais forte e equilibrado.
Por Guilherme Mazer: Co-vereador do mandato Coletivo do PSOL em Ponta Grossa. Engenheiro agrônomo, mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável