Debates
Já estamos nos acréscimos no país do futebol
Da Redação | 20 de março de 2021 - 01:56
Por Camila Ahrens
Em uma partida de futebol, o intervalo entre o primeiro e
segundo tempo é fundamental para que os jogadores dos dois times tomem um ar,
recuperem a energia e avaliem com o técnico as melhores táticas para ganhar o
jogo. A pandemia da Covid-19, agora, nos obriga a dar mais do que esse
intervalo. Caminhamos rapidamente para os 300 mil mortos, em pouco mais de 365
dias, e continuamos nos recusando a trancar a porta, mesmo depois de ela ter
sido arrombada duas vezes.
Manter os campeonatos de futebol rodando passa uma imagem de
que o vírus não é sério. De que a doença não é mortal também para jovens e
atletas. As pessoas não têm a dimensão do risco e da gravidade da
situação.
Não respeitar esse "intervalo", fazer jogadores
viajarem para outras cidades - e até mesmo estados do outro lado do país - no
momento em que deveriam estar isolados em casa, é muito mais do que perder por
7 x 1. O Brasil bate recordes diários de mortes, com UTIs públicas e privadas
lotadas e profissionais exauridos. Como cidadã e médica infectologista, afirmo
que não há a menor possibilidade de as partidas continuarem.
Quem fala diferente, não tem a dimensão do risco que estamos
correndo. Um jogo de futebol não se restringe aos 90 minutos de bola rolando.
Muitas vezes, para assistir a uma partida, as pessoas fazem um churrasco,
chamam os amigos e, por mais que isso signifique reunir apenas aquele grupinho
seleto que torce pelo mesmo time, isso acelera a proliferação do vírus. Isso
quando não vão para a frente dos estádios ou para as ruas, para comemorar a
vitória ou mostrar a indignação pela derrota. Se quem assiste o jogo com você
não mora na sua casa, é uma chance a mais que você dá para o vírus contaminar
quem você ama.
Entendo que os brasileiros são apaixonados pelo futebol, mas
futebol sem vida não é nada. A Covid-19 é o rival mais perigoso para qualquer
time. Ele não apenas rebaixa, ele mata!
O que acontece no futebol está em sintonia com o que
acontece nos hospitais. Assim como o Brasil é o país mais apaixonado pela bola
na rede, somos o local que mais tem transmissão do vírus neste momento. E a
possibilidade de reinfecção é ainda maior com a nova variante do vírus, que já
foi detectada em todo território nacional.
O futebol não é uma programação engessada e precisa parar
por umas semanas, um mês ou talvez um pouco mais. A paralisação dos campeonatos
deve ser vista como uma forma de conscientizar a população. E, assim como no
ano passado, voltar quando tivermos uma condição sanitária melhor, quando
entendermos mais a variante, quando tivermos um número maior de pessoas
vacinadas e, principalmente, vagas nos hospitais.
Eu concordo com a importância do entretenimento, ainda mais
o futebol que é tão democrático. Mas, nesse contexto de cansaço e falta de
soluções, estamos perdendo a sensibilidade. Precisamos definitivamente
compreender que falamos de vidas perdidas. Qualquer medida para salvar uma
vida, já vale muito. Essa vida é de um pai, de uma mãe, de um filho... que
nunca mais vai poder comemorar um gol. E que vai embora sem aquele abraço, sem
a despedida.
O estado é de calamidade. Sem dúvida, estamos no momento
mais crítico desde o início da pandemia. Já estamos nos acréscimos e perdendo
esse jogo. De goleada. Enquanto a vacina não chega para todos, o jeito é
aceitar esse cartão vermelho e sair de campo por um tempo para colocar a cabeça
no lugar e diminuir o número de casos ativos em todo país.
Camila Ahrens, infectologista do Hospital Marcelino
Champagnat