Debates
O valor da vida humana
Da Redação | 11 de dezembro de 2020 - 22:07
Por José Pio Martins
O ano de 2020 jogou na cara de todos nós o quanto a vida
humana é frágil e quão grande é nossa vulnerabilidade ante à fúria da natureza.
Uma pergunta que ressalta da pandemia e do sofrimento por ela imposto é: o que
aprendemos com tudo isso? A escritora britânica Taylor Caldwell (1900-1985), em
seu magnífico livro Médico de Homens e de Almas, de 1958, afirma que “o
conhecimento vem com lágrimas, desgosto e dor”.
Mesmo para quem não crê em Deus, a narrativa sobre a vida de
Lucano, ou Lucas, devidamente romanceada, traz mensagens e ensinamentos sobre a
existência na Terra que fazem bem e ajudam a entender a vida e as ações em
busca do bem e da felicidade. O personagem do livro é São Lucas, autor de um
evangelho do Novo Testamento, que a Bíblia apresenta como um médico sábio, bem
instruído e dono de um coração generoso, sempre preocupado com o sofrimento dos
pobres, enfermos e oprimidos.
O livro narra a peregrinação humana sob o desespero e as
trevas da vida, em situação de sofrimento, angústia e desesperança. Neste ano
de pandemia, ressurgem as perguntas feitas por Sócrates (469-399 a.C): Quem
somos? De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos? Santo
Agostinho (354-430 d.C), em sua filosofia, elevou o indivíduo à condição divina
e estabeleceu que a vida humana deve ser colocada no centro do universo,
protegida, respeitada e valorizada, porque o ser humano é único, dotado de
intelecto e portador de uma alma imortal.
Nos vinte séculos de predomínio de Ocidente cristão, a
questão moral e o valor da vida eram regidos por Deus, sua igreja, seus
sacerdotes, seus mandamentos, seus ritos e suas leis. A questão moral originava
as perguntas “como viver? o que devo fazer?”, cujas respostas tinham muito da
crença em Deus, que teria feito o humano à sua imagem e semelhança.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) provocou comoção na Europa
quando, 138 anos atrás, no livro A Gaia Ciência, ele bradou: “Deus está morto!”
e “fomos nós que o matamos!”, querendo com isso dizer que a crença em Deus e a
religião estavam morrendo, logo não bastavam mais para responder à questão
moral “que devo fazer?”. Sem Deus e sem religião, por que ser moral?, questão
levantada por Dostoiévski, pela boca de seu personagem Ivan Karamazov, que
disse: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.
A história da humanidade é a conquista progressiva da
liberdade, da prosperidade material e do respeito ao indivíduo, por razões
terrenas e sociais, independente da condição divina do ser humano. Quando os
liberais ingleses lutaram contra o poder imperial dos reis, o fizeram porque
consideravam que o indivíduo, sua vida, sua liberdade e sua propriedade são os
valores maiores, que devem pairar acima do Estado, não importa se Deus existe
ou não.
O filósofo francês André Comte-Sponville (1952-) expressou
sua inquietação de que a morte social de Deus, gritada por Nietzsche, possa ser
ao mesmo tempo a morte do espírito – como diz ele, o desaparecimento, pelo
menos no Ocidente, de toda vida espiritual digna desse nome – a tal ponto que,
com o esvaziamento das igrejas, só saibamos preencher nossos domingos com o
shopping center e relegar a moral a segundo plano.
A pandemia, a angústia e a dor deveriam nos fazer melhores,
mais humanos e mais preocupados com a vida e o bem-estar de nosso semelhante. A
valorização da vida é base inclusive para o aperfeiçoamento das soluções
coletivas, principalmente aquelas executadas pelo Estado por meio de políticas
públicas e ações de governo. Daí deriva a importância de sociedade e governo
fazerem um esforço adicional no combate à pobreza, à fome, ao desemprego e à
desigualdade social.
A economia deve ser um sistema produtivo e uma a ordem social a favor do ser humano, sua vida e seu bem-estar. Mas não esperemos conseguir esse objetivo por ação da bondade humana. A bondade é uma virtude humana individual, logo, as pessoas podem ser bondosas. Mas as instituições são impessoais, em primeiro lugar elas têm interesses, a bondade vem depois, se é que vem. Lembro que Roberto Campos, em um momento de tristeza e frustração, disse: “O mundo será salvo pelos eficientes, não pelos caridosos, pois até os caridosos agem por interesse”. Neste fim de ano, com o espírito de Natal, em tempo de crise, vale a pena refletir sobre esses temas.
José Pio Martins, economista, reitor da Universidade
Positivo.