Debates
A quem interessa manter monopólios no transporte interestadual de passageiros?
Da Redação | 24 de outubro de 2020 - 01:15
Por Diogo de Sant' Ana
Do conjunto de setores regulados no Brasil, o setor de
transporte rodoviário é o que tem apresentado maior dificuldade e resistência
para a criação de um ambiente regulatório competitivo que possa gerar a
melhoria dos serviços e diminuição das tarifas para os usuários.
Com a criação da Agência Nacional de Transportes Terrestres
(ANTT), em 2001, a ideia era promover um ambiente mais competitivo e o ingresso
de novos investimentos por meio da reorganização das rotas e realização de
processos licitatórios para outorga das linhas interestaduais e internacionais
(TRIIP). Porém, mesmo com as determinações legais de realização de licitação
(art. 26 original da Lei nº 10.233/2001), com as iniciativas da agência
reguladora (especialmente o Plano de Outorgas, Res. ANTT 3872/2012) e as
decisões dos órgãos de controle para a realização de processos competitivos
(por exemplo, Acórdãos TCU 1926/04 e 2.903/12), as licitações nunca chegaram ao
final.
O resultado para a sociedade brasileira foi péssimo. O
Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo ($/Km viajado) e a maioria das
linhas no transporte interestadual ainda são operadas em regime de monopólio
puro. Segundo dados da própria ANTT, em 2019 cerca de 66% do total de mercados
dependiam de um único operador (monopólio), 26% possuíam apenas duas empresas
operando (duopólio) e somente 8% tinham três ou mais operadores concorrendo
pelos usuários de ligações interestaduais. Acrescente-se ainda que tais
percentuais consideram como concorrentes empresas que pertencem a um mesmo
dono. Caso o cálculo fosse feito considerando os grupos econômicos atuantes no
setor, os indicadores de concorrência na prestação desse serviço seriam ainda
piores.
A partir de 2014,
a ANTT, o Congresso Nacional e o Poder Executivo buscaram alternativas para
promoção da competição e atração de novos investimentos. Por determinação da
Lei nº 12.996/14 e do Decreto nº 10.157/19, a agência pode utilizar o regime
jurídico da autorização para o ingresso de novos atores no setor. O mecanismo é
inteligente e eficaz, pois parte do reconhecimento de que a prestação de
serviço de transporte interestadual não é um monopólio natural, ou seja, pode
ser operado em regime de concorrência entre vários agentes econômicos ao mesmo
tempo.
O regime de autorização contribuiria não só para o aumento
da competição, mas também permitir que os agentes econômicos que querem cumprir
estritamente a Lei e prestar o serviço de acordo com todas as determinações
regulatórias impostas pela ANTT o façam de maneira regular, inibindo a atuação
de transportadores clandestinos, que descumprem de forma contumaz as regras de
segurança e bem estar dos passageiros.
Desde a aprovação
do regime de autorização as resistências que impediram por anos a realização
das licitações tomaram uma nova forma, utilizando o mesmo argumento da
necessidade de se respeitar o “processo licitatório”. Os dispositivos
acrescidos pela Lei 12.966/2014 foram questionados pela ADI 5549 e pela ADI
6270, ambas em pauta para julgamento no Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo
tempo, tramitam no Congresso Nacional proposições voltadas a eliminar o regime
de autorização.
A armadilha aqui está exatamente no jogo de palavras. A
súbita defesa do regime de permissão e da realização de licitação que tomou
conta de parte do setor nada tem haver com a defesa da pluralidade e da
competição, mas sim, parece ser a forma mais fácil de fazer a legislação andar
para trás, eliminando o potencial competitivo das autorizações. O que se busca,
na verdade, é retornar à paralisia da situação observada antes da Lei 12.966/14
e do Decreto 10.157/19, na qual, apesar das determinações legais e dos órgãos
de controle, as licitações simplesmente não chegavam ao seu final, fossilizando
monopólios dos mesmos grupos empresariais que operam o setor há décadas.
Em que pesem as constantes tentativas para sua derrubada, o
regime de autorização tem sido mantido até o momento pelo Poder Judiciário e
pelo Congresso, o que permitiu avançar no processo de autorização de entrada de
novos agentes no mercado. O Decreto nº 10.157/2019 reforçou a possibilidade de
outorga de autorizações como regra, e as restrições à concorrência como
exceção. Em agosto deste ano, a agência deu mais um passo importante para
implantação do novo regime ao colocar em discussão regras ainda mais claras
para autorização de novas empresas (Tomada de Subsídios nº 4/2020). O
objetivo da ANTT é promover um choque de investimentos e competição, buscando
democratizar o acesso de todos ao transporte rodoviário, com padrões elevados
de qualidade, seja no atendimento ao usuário, seja em relação aos requerimentos
de segurança e fiscalização na entrega do serviço.
Caso o processo siga adiante, não faltarão interessados em
realizar novos investimentos. Já se encontram na ANTT mais de 74 mil
solicitações para operar em todo o país. A análise mais atenta dos pedidos de
autorizações pendentes na ANTT desmente de forma categórica a argumentação de
que os que pleiteiam autorizações querem atuar apenas nos mercados de grande
demanda. A verdade é que o atendimento dos pedidos de autorização pendentes
aumentaria de 1882 para 2300 o número de municípios atendidos pelo transporte
interestadual e internacional. Destaque-se que 86% dos municípios que
receberiam os novos autorizados encontram-se na faixa de até 50 mil habitantes.
Além disso, 78% das solicitações de autorização correspondem a ligações
interestaduais ainda não atendidas. A autorização dessas novas linhas poderia
resultar em um incremento de 175% na cobertura do serviço nacionalmente.
A abertura de mercado pode permitir também que empresas de
tecnologia e inovação ofereçam novas alternativas ao consumidor. São startups
que conseguem garantir comodidade, melhor preço e conforto para os passageiros
desde o momento da compra da passagem até a viagem em si. Nas rotas nas quais
as autorizações já foram outorgadas os resultados positivos são claros: redução
expressiva do preço nominal das passagens e do preço por quilômetro em
comparação com linhas onde não há concorrência.
A ampliação da concorrência e dos investimentos no setor dependem, no entanto, do fortalecimento da segurança jurídica do regime de autorização. Esse fortalecimento passa pelo seu reconhecimento definitivo no julgamento das ADI’s 5549 e 6270 e pela aceleração das outorgas pela ANTT, tornando efetiva a entrada de novos agentes econômicos em um setor com muito potencial para crescimento. Fortalecido o regime de autorização, ganhará o consumidor brasileiro com mais opções de viagens, em ônibus melhores e a preços menores.