Debates
Um novo mundo (ainda) é possível?
Da Redação | 06 de outubro de 2020 - 01:58
Por Gladisson Silva da Costa
O Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras organizações
apontam que a economia mundial encolherá consideravelmente em 2020 e,
provavelmente, enfrentemos “espasmos” dessa crise nos anos seguintes, mas nem
todo mundo será atingido da mesma forma.
O coronavírus, atingiu a Ásia e a Europa com uma força
avassaladora, colocou de joelhos a gigante China e obliterou as tradicionais
economias europeias. Vimos a maior economia do planeta ser duramente golpeada
pelos efeitos da pandemia. É a maior crise econômica desde a Grande Depressão
de 1929.
Entretanto, embora o vírus não dependa de questionários
socioeconômicos para se espalhar, todos os dados apontam para uma verdade que a
gramática neoliberal que domina o debate público atualmente tenta silenciar:
são os mais pobres, de novo, que vão pagar a conta.
Os Estados Unidos que, entre o clube dos mais ricos, têm os
piores índices de pobreza, ao se tornar o epicentro da pandemia, mostrou ao
mundo que o coronavírus não é tão democrático quanto se imaginava.
A população negra é a parcela que mais sofreu com os efeitos
da pandemia nos Estados Unidos, não porque exista algum componente biológico
que faça com que os negros sejam mais suscetíveis ao contágio, mas porque
existe um enorme problema socioeconômico. Ou seja, os negros são maioria entre
os mais pobres e, portanto, não têm condições de fazer um distanciamento social
efetivo (alguém precisa trabalhar, não é mesmo?!), nem tampouco têm acesso a um
tratamento de saúde eficiente quando contaminados.
No Brasil, o vírus encontrou uma realidade ainda mais cruel.
Durante o auge da pandemia vimos cemitérios superlotados, filas de ambulâncias
em busca de UTI, filas de pessoas desesperadas para ter acesso ao dinheiro do
auxílio emergencial, vimos também desvio da verba destinada ao combate à
pandemia, ações de despejos, demissões em massa, violência policial
(acompanhada do velho racismo) e fechamento de várias empresas.
Diante desse caos, os mais pobres novamente se viram
sozinhos, abandonados à própria sorte e diante de uma escolha impossível: ou se
expõem ao vírus, arriscando suas vidas e de suas famílias, engrossando o número
de vítimas da covid-19, ou enfrentam “com a cara e a coragem” as consequências
econômicas da crise.
A pandemia, além da nossa imensa desigualdade, escancarou
outro ponto particularmente preocupante, a aparente falta de imaginação dos
governantes e de uma parcela significativa da população. Como a nossa
sociedade, capaz de feitos fantásticos como a chegada à lua e a realização de
mega construções impressionantes, não consegue imaginar um mundo onde seres
humanos não precisem escolher entre morrer de fome com o desemprego ou terem
suas vidas ceifadas pela pandemia?
Sobre este questionamento, vem a gritaria: isolamento social
é privilégio! Mais um sintoma da morte do bom senso e com ele parte da nossa
própria humanidade.
Como pode uma necessidade tão urgente ser interpretada como
privilégio? Claro que a desigualdade grita aos nossos olhos e expõe o fato de
que apenas um pequeno grupo consegue ter acesso pleno à saúde, educação,
moradia e entretenimento, mas interpretar o acesso a uma condição digna de
existência como privilégio, como regalia, só nos enfraquece enquanto grupo
social e nos impede de ver a origem do problema e, mais importante, superá-lo.
O fato de algumas pessoas terem acesso a direitos tão
básicos, como a possibilidade de se proteger da maior crise sanitária dos
últimos cem anos, não deveria ser o problema. O problema deveria ser fato da
nossa sociedade ser incapaz de (ou sequer tentar) garantir que esse direito
seja universal.
Utopia? Pode ser, mas ambicionar uma nova sociedade deveria
ser mais cativante e capaz de mobilizar mais paixões do que o aceite (e mesmo a
defesa) dessa distopia que decidimos chamar de “realidade”, onde o tecido
social se desfaz, a natureza é desprezada, minorias são massacradas, onde os
seres humanos não podem viver de forma plena (já que não vivem, apenas
sobrevivem), pois precisam pagar os boletos (quando dá) e o seu valor social é
medido em likes e/ou pela sua capacidade de consumir.
J.R.R. Tolkien, o autor de “O Senhor dos Anéis”, em um
ensaio no qual defende de forma primorosa o valor literário e social das
“histórias de fadas” (fruto de uma palestra ministrada em 1939, na Escócia),
reagindo aos detratores deste gênero, sublinhou a falta de imaginação das obras
de ficção científica da época que, em geral, mesmo diante de uma sociedade
repleta de coisas repugnantes e terríveis como “o barulho, o fedor, a crueldade
e a extravagância do motor de combustão interna” eram incapazes de ir “além da
esplêndida ideia de construir mais cidades do mesmo tipo em outros planetas”.
Essa carapuça nos serve muito bem, infelizmente. Apesar dos horrores a que
somos expostos, seguimos incapazes de imaginar uma outra realidade, com outras
regras, com outros valores.
Enfim, que a experiência de sermos “testemunhas oculares da
história” nos torne capazes de desenvolver uma imaginação que vá além do óbvio,
não apenas para elaborar histórias maravilhosas sobre o Belo Reino, como o fez
o criador da Terra Média, mas para efetivamente desenvolvermos uma nova
sociedade.
A frase é batida, eu sei, mas a obviedade não reduz a sua
importância, um novo mundo é possível, ou melhor, é urgente e necessário.
Gladisson Silva da Costa é especialista em Metodologia do
Ensino de História, professor dos cursos de Letras e História do Centro
Universitário Internacional Uninter.