Debates
Os adversos Brasis da pandemia
Da Redação | 06 de agosto de 2020 - 01:29
Por Vera Garcia
O consenso científico mundial sobre a prevenção do novo
coronavírus, até que chegue a vacina, inclui três medidas básicas: uso
constante de álcool gel para higienizar as mãos, uso de máscaras e o isolamento
social. Parte da sociedade, temerosa com a possibilidade de contaminação, tenta
seguir à risca essas orientações. Outra parte, negacionista, faz de conta que
nada está acontecendo e opta por não aderir aos meios de proteção.
Entretanto, também existe uma grande parte da população
brasileira que, por circunstâncias, permanece à margem de qualquer orientação e
invisível aos olhos do governo, dos noticiários e da maioria dos seus
compatriotas. São as pessoas que vivem nas 13 mil comunidades carentes
espalhadas pelo Brasil.
Segundo dados atualizados da Agência Brasil, 89% dos
moradores de favelas estão em capitais e regiões metropolitanas. As regiões
Norte e Nordeste registraram maior percentual de pessoas vivendo em
comunidades, de 5% a 10%. Os Estados do Amazonas, Pará, Maranhão e Pernambuco
têm mais de 10% da população em favelas.
A pesquisa revela que há 13,6 milhões de brasileiros vivendo
em aglomerados subnormais, privados de saneamento básico, com acesso restrito à
água e a condições básicas de higiene. Sem condições financeiras, o álcool gel
é artigo de luxo para estas pessoas que convivem de forma muito próxima com
familiares e vizinhos, sem qualquer possibilidade crível de fazer isolamento
social.
Relatos de alguns moradores de comunidades indicam que não
houve isolamento social em nenhuma fase da pandemia, pelo simples fato de que
não há planejamento urbano, a partir das normas exigidas de construção e
convívio. Onde o governo não entra com sua parte, não há como impor regras.
Os moradores nascem e crescem sabendo que não podem contar
com promessas de políticos. Sendo assim, a linguagem, os valores e a noção de
normalidade são totalmente diferentes do asfalto. Essas pessoas sobrevivem
corajosamente a todos os infortúnios, desenvolvem soluções criativas e são extremamente
solidárias. Por outro lado, são mais expostas a doenças físicas e mentais.
Quando as mídias mostram de forma vigilante os muros lotados
da Urca ou os transeuntes andando inadvertidamente aglomerados e sem máscara,
de certa forma, esquecem ou preferem não mostrar que existem muitos Brasis com
regras próprias, submetidos a leis locais (adaptadas às suas condições
peculiares) e regidos por modelos mentais forçosamente enquadrados a esses
ambientes. E, mais importante, na vigência de uma pandemia, não adianta aplicar
regras e limites a uma parte da sociedade, e ignorar que milhões de brasileiros
não vão seguir as mesmas regras por total falta de planejamento urbanístico, de
políticas públicas de moradia e de profundas desigualdades sociais.
Vale lembrar que essas pessoas prestam serviços importantes à sociedade, em todos os segmentos. Portanto, se o país pretende avançar em índices de desenvolvimento social e humanitário, e conter a pandemia, é fundamental assumir a responsabilidade pelas necessidades dos mais vulneráveis, projetar a mesma indignação ferrenha que sente pelos aglomerados nas praias ou nos bares e à falta de políticas públicas efetivas de moradias populares e dignas para esses 13 milhões de brasileiros.
Dra. Vera Garcia, psiquiatra pela UFRJ, com MBA de gestão em saúde pela FGV e observership no Jackson Mental Health Hospital, da Universidade de Miami