Debates
Crise reveladora
Da Redação | 24 de abril de 2020 - 02:24
Por Luiz Alexandre Gonçalves Cunha
A crise médico-sanitária de repercussões impressionantes que
estamos vivendo vem expondo de forma eloquente como a opção por políticas públicas
fundamentas num liberalismo econômico aplicado de forma desmedida impõe riscos
aos países que buscam esta alternativa. Neste artigo, partimos da questão que
ficou estampada no noticiário referente às dificuldades que muitos países
enfrentam para se abastecerem de insumos e equipamentos para enfrentarem o
inimigo invisível que é o coronavírus. Os problemas não se resumem apenas às
necessidades relacionadas ao segmento médico-sanitário, mas a todos os setores
econômico-sociais.
No Brasil, assistimos as fabricantes de smartphones serem
obrigadas a paralisar a produção porque suas fornecedoras chinesas tiveram que
parar com a produção, em virtude das medidas rígidas de isolamento social em
algumas regiões da China. Dessa forma, ficou evidente a dependência do Brasil
em relação à China para manter em funcionamento seu parque industrial,
inclusive em setores estratégicos como aqueles relacionados a todas as cadeias
produtivas vinculadas ao complexo médico-sanitário. Desta vez, o
estrangulamento foi provocado pelas consequências de uma pandemia que se
iniciou na China, mas poderia ter causas geopolíticas relacionadas a conflitos
e guerras regionais ou globais.
Os
países europeus que viveram toda sorte de conflitos e guerras, sofrendo
bloqueios continentais, destruição do aparato produtivo, mobilização
compulsória de fatores produtivos para o esforço militar, entre outras
situações que levaram a dificuldades extremas à sobrevivência digna da
população. A Europa, marcada por essas experiências traumáticas, aprendeu
muitas lições. Entre elas, destacamos a preocupação em não deixar que a
dinâmica do capitalismo global inviabilizasse a agropecuária europeia, que não
é competitiva o suficiente para fazer frente às grandes nações produtoras
agropecuárias, com destaque para os EUA, Brasil, Argentina e Austrália. Para
isso, criaram um grande projeto de alcance continental, visando, entre muitos
outros objetivos, manter vivo um setor agropecuário em condições de suprir as
necessidades de produção agroalimentar mínimas, amenizando a dependência
externa dos países europeus. Esse projeto é a Política Agrícola Comum-PAC, criada
em 1962, poucos anos depois da organização do Mercado Comum Europeu, em 1957,
embrião da atual União Europeia-UE, mas que ainda vigora, não obstante as
reformas que aconteceram no período.
Ao proteger
o seu setor agropecuário, a Europa abriu mão de guiar as suas opções de
política econômica seguindo apenas os pressupostos liberais clássicos, como as
leis econômicas das vantagens absolutas
ou comparativas, as quais, em linhas gerais, na ausência de intervenção estatal,
levariam a uma inevitável especialização produtiva, com resultados no comércio exterior, levando os países a se
tornarem exportadores dos produtos que são mais competitivos, transformando-se
em importadores de bens dos países que
são competitivos na produção de outras mercadorias. Estas teorias liberais
foram propostas na segunda metade do século XVIII e no início do século XIX,
influenciando, desde então, o debate sobre se os países deveriam buscar a
industrialização baseada em políticas públicas patrocinadas pelo Estado ou, ao
contrário, deveriam se contentarem na produção e exportação agropecuária. O
argumento de que não se deveria subsidiar a industrialização era baseado apenas
numa relação econômica de custo-benefício. No Brasil, durante muitas décadas,
travou-se um debate acalorado entre economistas, industriais, políticos e
gestores públicos sobre se o Estado deveria contrariar as teorias liberais e
investir em projetos de industrialização ou deveria cuidar apenas de
administrar a produção agropecuária voltada para exportação. A opção decisiva
pela industrialização só foi feita no primeiro período Vargas, intensificando-se
a partir de então, até que, na década de 1980, consolidou-se no Brasil um
imenso parque industrial. Para isso, foi decisivo a atuação do Estado
fundamentado no planejamento econômico que definiu políticas públicas de empréstimos
subsidiados, reservas de mercado, criação de empresas estatais, entre uma série
de outras iniciativas estatais. Novas políticas industriais devem considerar os
erros do passado quando segmentos ineficientes foram excessivamente protegidos,
buscando encontrar caminhos que consigam incentivar o surgimento ou a
manutenção de segmentos industriais, mas sem premiar a incompetência.
A onda
neoliberal liderada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, iniciada no início
da década de 1980, promoveu um combate bem sucedido ao intervencionismo estatal
no campo ideológico, ao mesmo tempo que, no campo prático, políticas
financeiras reduziram os excedentes econômicos disponíveis para as políticas de
industrialização dos países do Terceiro Mundo. No Brasil, desde então,
instalou-se um processo de desindustrialização que foi agravado com a ascensão
dos tigres asiáticos que passaram a cooptar investimentos produtivos das
empresas dos países desenvolvidos, movimento que se ampliou de forma significativa
com a guinada político-econômica da China, que a transformou no polo mais dinâmico
do capitalismo mundial. Inclusive, o movimento de transferência de
investimentos industriais para China não empolgou apenas empresas dos países
desenvolvimentos, pois muitas empresas brasileiras, voltadas para exportação,
também instalaram plantas industriais na China nestas duas últimas décadas,
aproveitando as vantagens comparativas da economia chinesa no que se refere,
principalmente, à exportação de produtos industriais.
A crise médico-sanitária que estamos vivendo está cobrando
um preço alto ao Brasil que, mesmo com seu potencial industrial, acomodou-se a situação de desindustrialização
compensada pela ampliação das exportações
agropecuárias para a mesma China, levando, inclusive, ao acúmulo de divisas sem
precedentes, mas deixando de ampliar a diversificação do parque industrial, ou
mesmo reduzindo-a de forma acelerada, pela incapacidade de inúmeros segmentos industriais
do Brasil de competirem com os produtos importados da China. Assim, a perigosa
dependência de produtos chineses no segmento médico-sanitário repete-se numa
série de outros setores, indicando que qualquer situação que dificulte ou mesmo
impeça o abastecimento do mercado econômico-produtivo brasileiro pelos inúmeros
produtos chineses gerará crises de abastecimento com consequências econômicas,
sociais e políticas graves. Portanto, defende-se que o radicalismo liberal deve
ser abandonado em favor do resgate do planejamento econômico qualificado que
possa embasar um ativismo econômico estatal que se preocupe em dotar o Brasil
de um parque industrial o mais completo possível para garantir uma autonomia
frente ao poder econômico das grandes potências. Ao mesmo que o país estaria
mais protegido dos riscos políticos, ambientais e médico-sanitários também estariam
dadas as condições para que a economia brasileira se tornasse mais diversificada.
Neste artigo, a
argumentação centrou-se apenas no setor
industrial, mas ela pode ser considerada para todos os setores que são decisivos para
dar um mínimo de segurança estratégica a um país como o Brasil, que, por sua
grande extensão territorial, diversidade populacional e extrema desigualdade
social e regional, apresenta-se com uma complexidade social que levou Tom Jobim
a afirmar que “o Brasil não é para principiantes”.
Prof. Dr. Luiz Alexandre Gonçalves Cunha. Professor
Associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa-UEPG