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Imagem ilustrativa da imagem Crise reveladora

Por Luiz Alexandre Gonçalves Cunha

A crise médico-sanitária de repercussões impressionantes que estamos vivendo vem expondo de forma eloquente como a opção por políticas públicas fundamentas num liberalismo econômico aplicado de forma desmedida impõe riscos aos países que buscam esta alternativa. Neste artigo, partimos da questão que ficou estampada no noticiário referente às dificuldades que muitos países enfrentam para se abastecerem de insumos e equipamentos para enfrentarem o inimigo invisível que é o coronavírus. Os problemas não se resumem apenas às necessidades relacionadas ao segmento médico-sanitário, mas a todos os setores econômico-sociais.

No Brasil, assistimos as fabricantes de smartphones serem obrigadas a paralisar a produção porque suas fornecedoras chinesas tiveram que parar com a produção, em virtude das medidas rígidas de isolamento social em algumas regiões da China. Dessa forma, ficou evidente a dependência do Brasil em relação à China para manter em funcionamento seu parque industrial, inclusive em setores estratégicos como aqueles relacionados a todas as cadeias produtivas vinculadas ao complexo médico-sanitário. Desta vez, o estrangulamento foi provocado pelas consequências de uma pandemia que se iniciou na China, mas poderia ter causas geopolíticas relacionadas a conflitos e guerras regionais ou globais.

                Os países europeus que viveram toda sorte de conflitos e guerras, sofrendo bloqueios continentais, destruição do aparato produtivo, mobilização compulsória de fatores produtivos para o esforço militar, entre outras situações que levaram a dificuldades extremas à sobrevivência digna da população. A Europa, marcada por essas experiências traumáticas, aprendeu muitas lições. Entre elas, destacamos a preocupação em não deixar que a dinâmica do capitalismo global inviabilizasse a agropecuária europeia, que não é competitiva o suficiente para fazer frente às grandes nações produtoras agropecuárias, com destaque para os EUA, Brasil, Argentina e Austrália. Para isso, criaram um grande projeto de alcance continental, visando, entre muitos outros objetivos, manter vivo um setor agropecuário em condições de suprir as necessidades de produção agroalimentar mínimas, amenizando a dependência externa dos países europeus. Esse projeto é a Política Agrícola Comum-PAC, criada em 1962, poucos anos depois da organização do Mercado Comum Europeu, em 1957, embrião da atual União Europeia-UE, mas que ainda vigora, não obstante as reformas que aconteceram no período.  

                Ao proteger o seu setor agropecuário, a Europa abriu mão de guiar as suas opções de política econômica seguindo apenas os pressupostos liberais clássicos, como as leis econômicas das  vantagens absolutas ou comparativas, as quais, em linhas gerais, na ausência de intervenção estatal, levariam a uma inevitável especialização produtiva, com resultados  no comércio exterior, levando os países a se tornarem exportadores dos produtos que são mais competitivos, transformando-se em importadores de bens dos países  que são competitivos na produção de outras mercadorias. Estas teorias liberais foram propostas na segunda metade do século XVIII e no início do século XIX, influenciando, desde então, o debate sobre se os países deveriam buscar a industrialização baseada em políticas públicas patrocinadas pelo Estado ou, ao contrário, deveriam se contentarem na produção e exportação agropecuária. O argumento de que não se deveria subsidiar a industrialização era baseado apenas numa relação econômica de custo-benefício. No Brasil, durante muitas décadas, travou-se um debate acalorado entre economistas, industriais, políticos e gestores públicos sobre se o Estado deveria contrariar as teorias liberais e investir em projetos de industrialização ou deveria cuidar apenas de administrar a produção agropecuária voltada para exportação. A opção decisiva pela industrialização só foi feita no primeiro período Vargas, intensificando-se a partir de então, até que, na década de 1980, consolidou-se no Brasil um imenso parque industrial. Para isso, foi decisivo a atuação do Estado fundamentado no planejamento econômico que definiu políticas públicas de empréstimos subsidiados, reservas de mercado, criação de empresas estatais, entre uma série de outras iniciativas estatais. Novas políticas industriais devem considerar os erros do passado quando segmentos ineficientes foram excessivamente protegidos, buscando encontrar caminhos que consigam incentivar o surgimento ou a manutenção de segmentos industriais, mas sem premiar a incompetência.

                A onda neoliberal liderada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, iniciada no início da década de 1980, promoveu um combate bem sucedido ao intervencionismo estatal no campo ideológico, ao mesmo tempo que, no campo prático, políticas financeiras reduziram os excedentes econômicos disponíveis para as políticas de industrialização dos países do Terceiro Mundo. No Brasil, desde então, instalou-se um processo de desindustrialização que foi agravado com a ascensão dos tigres asiáticos que passaram a cooptar investimentos produtivos das empresas dos países desenvolvidos, movimento que se ampliou de forma significativa com a guinada político-econômica da China, que a transformou no polo mais dinâmico do capitalismo mundial. Inclusive, o movimento de transferência de investimentos industriais para China não empolgou apenas empresas dos países desenvolvimentos, pois muitas empresas brasileiras, voltadas para exportação, também instalaram plantas industriais na China nestas duas últimas décadas, aproveitando as vantagens comparativas da economia chinesa no que se refere, principalmente, à exportação de produtos industriais.

A crise médico-sanitária que estamos vivendo está cobrando um preço alto ao Brasil que, mesmo com seu potencial industrial,  acomodou-se a situação de desindustrialização compensada pela ampliação das  exportações agropecuárias para a mesma China, levando, inclusive, ao acúmulo de divisas sem precedentes, mas deixando de ampliar a diversificação do parque industrial, ou mesmo reduzindo-a de forma acelerada, pela  incapacidade de inúmeros segmentos industriais do Brasil de competirem com os produtos importados da China. Assim, a perigosa dependência de produtos chineses no segmento médico-sanitário repete-se numa série de outros setores, indicando que qualquer situação que dificulte ou mesmo impeça o abastecimento do mercado econômico-produtivo brasileiro pelos inúmeros produtos chineses gerará crises de abastecimento com consequências econômicas, sociais e políticas graves. Portanto, defende-se que o radicalismo liberal deve ser abandonado em favor do resgate do planejamento econômico qualificado que possa embasar um ativismo econômico estatal que se preocupe em dotar o Brasil de um parque industrial o mais completo possível para garantir uma autonomia frente ao poder econômico das grandes potências. Ao mesmo que o país estaria mais protegido dos riscos políticos, ambientais e médico-sanitários também estariam dadas as condições para que a economia brasileira se tornasse mais diversificada.  

Neste artigo,  a argumentação centrou-se  apenas no setor industrial, mas ela pode ser considerada  para todos os setores que são decisivos para dar um mínimo de segurança estratégica a um país como o Brasil, que, por sua grande extensão territorial, diversidade populacional e extrema desigualdade social e regional, apresenta-se com uma complexidade social que levou Tom Jobim a afirmar que “o Brasil não é para principiantes”.

Prof. Dr. Luiz Alexandre Gonçalves Cunha. Professor Associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa-UEPG

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