Debates
Pandemia, o sistema carcerário e o CNJ
Da Redação | 09 de abril de 2020 - 02:08
Por Euro Bento Maciel Filho
Como todo mundo sabe, a pandemia decorrente do coronavírus
espalhou pânico e aflição, causando imensos prejuízos financeiros e milhares de
perdas humanas.
Dentro desse contexto, não foram poucos os países que,
visando controlar a doença dentro de seus territórios, adotaram medidas
restritivas ao direito de liberdade, tais como o “confinamento” de populações
inteiras dentro das suas casas, a paralisação de toda e qualquer atividade
comercial, e, ainda, o fechamento de suas fronteiras. Ou seja, a limitação da
liberdade de locomoção, por variadas formas, tem sido a medida mais comumente
adotada mundo afora, como forma de combate e prevenção à disseminação da Covid-19.
Contudo, paradoxalmente, enquanto sociedades inteiras ficam
“reclusas”, fato é que, dentre as medidas recomendadas para se evitar o surto
do coronavírus também está a liberação de presos, que se encontram amontoados
em prisões e estabelecimentos prisionais.
De fato, assim foi feito no Irã (que libertou mais de 85 mil
detentos) e nos Estados Unidos, onde boa parte da população carcerária tem sido
solta, mediante critérios e requisitos específicos.
Mas, afinal de contas, porque a soltura de presos é considerada
uma política eficaz para prevenir e combater a disseminação da Covid-19?
Partindo do princípio de que toda e qualquer prisão, independentemente de país
ou região, pressupõe a aglomeração de diversos presos, em espaços diminutos e,
normalmente, em situações insalubres e pouco higiênicas, não é preciso ir muito
longe para se perceber o grande perigo que os estabelecimentos prisionais
representam. Afinal, além dos detentos há ainda, uma infinidade de pessoas que
frequentam ou trabalham nos estabelecimentos prisionais.
Além disso, é fato que as pessoas encarceradas estão mais
suscetíveis a contraírem doenças dermatológicas, gástricas e, sobretudo,
respiratórias (tuberculose, por exemplo).
Enfim, é preciso ter em mente que um presídio, qualquer que
seja o regime (fechado ou semiaberto), pode se transformar num verdadeiro
difusor da doença, seja interna, seja externamente.
Nesse compasso, justamente para propor aos Tribunais e
Magistrados a “adoção de medidas preventivas à propagação de infecção pelo novo
coronavírus – Covid-19 no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do
sistema socioeducativo”, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, no
último dia 17 de março, a Recomendação n. 62/2020, cujo texto traz uma série de
medidas voltadas à proteção não só dos presos, mas também a todos aqueles que
frequentam nossas penitenciárias (agentes, policiais, carcereiros,
funcionários, parentes etc.), tudo com o claro objetivo de evitar que as mesmas
se transformem em focos propagadores da doença.
E, como não poderia deixar de ser, é certo que, entre as
propostas trazidas pelo CNJ, está a soltura de presos e adolescentes
infratores, notadamente daqueles inseridos no chamado “grupo de risco” e,
também, dos que estejam presos em estabelecimentos prisionais ou “com ocupação
superior à capacidade” ou que não disponham de equipe médica própria.
De efeito, da leitura atenta daquela “recomendação”, nota-se
a especial preocupação do CNJ com as “pessoas privadas de liberdade”, haja
vista que, conforme expressamente mencionado no seu texto, é fato que “um
cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisional e
socioeducativo produz impactos significativos para a segurança e a saúde
pública de toda a população, extrapolando os limites internos dos estabelecimentos”.
Insta dizer, desde logo, que a Recomendação publicada pelo
CNJ não é lei. Trata-se, sim, de mera orientação passada pelo CNJ a juízes e
tribunais do país inteiro, a qual, por óbvio pode, ou não, ser seguida.
Contudo, ainda que sua aplicação seja facultativa, fato é que o próprio STF,
nos autos da ADPF n. 347, recomendou aos juízes das Execuções Penais que
procedam à análise da situação dos presos, caso a caso, para que sejam
adotadas, quando possível, as recomendações passadas pelo CNJ.
Antes das cornetas soprarem, é bom dizer que o CNJ não
propugna pela soltura irrestrita de todos os presos (e menores infratores).
Longe disso! Basta uma atenta análise do texto da Recomendação 62/2020 para se
constatar que, muito embora haja expressa orientação para um maior cuidado com
os presos inseridos no “grupo de risco” (idosos, diabéticos, gestantes,
lactantes ou que tenham doenças preexistentes), existem critérios bem
específicos.
Não é, positivamente, o “liberou geral”, como alguns
desinformados andaram apregoando. Tratam-se, sim, de orientações certas e
determinadas, voltadas à proteção de toda a sociedade (e não apenas da massa
carcerária), aplicáveis ao específico momento histórico que o país atravessa.
De toda forma, nesse momento de pandemia, é preciso levar em
conta também o lado humanitário da questão. Afinal, lastreado no bom senso e na
razoabilidade, é de todo inconcebível aceitar que presos doentes, ou que tenham
a saúde debilitada, permaneçam reclusos, em um ambiente insalubre, expostos à
maior probabilidade de serem infectados pelo coronavírus, que lhes poderá ser
fatal.
De mais a mais, analisando-se o tema sob o aspecto
constitucional, é preciso ainda dizer que a nossa Carta Magna prevê, no
seu artigo 196, que, independentemente de qualquer condição, “a saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação”.
Sob esse prisma, sendo certo que incumbe ao Estado proteger
a saúde e a vida de todo e qualquer cidadão (preso ou solto, tanto faz),
evidente, portanto, que todas as medidas possíveis para as assegurar, devem ser
adotadas.
Nota-se que a Recomendação n. 62/2020, do CNJ, não só
tem guarida nas orientações passadas pelos órgãos médicos e sanitários, mas,
também, ostenta claro viés constitucional e, mais que isso, humanitário.
Sendo assim, longe de pugnar pela “soltura geral”, o que a
Recomendação n. 62/2020, do CNJ, propõe é, apenas e tão somente, que nossos
juízes e nossas Cortes de Justiça adotem o bom senso como regra, para que a
situação processual/carcerária dos nossos presos, sobretudo daqueles inseridos
no “grupo de risco”, seja reanalisada, sem preconceitos e prejulgamentos. Se
for o caso, que se solte...e ponto.
Euro Bento Maciel Filho é mestre em Direito Penal pela
PUC/SP. Também é professor universitário, de Direito Penal e Prática Penal,
advogado criminalista e sócio do escritório Euro Maciel Filho e Tyles –
Sociedade de Advogados.