Debates
Pacote anticrime e a nova causa de impedimento imposta ao magistrado
Da Redação | 17 de janeiro de 2020 - 03:11
Por Euro Bento Maciel Filho
No apagar das luzes de 2019, o Presidente da República
sancionou a Lei 13.964/19 (a chamada “Lei Anticrime”), cujo texto traz inúmeras
alterações tanto no Código Penal e no Código de Processo Penal, quanto em
diversas outras leis penais extravagantes.
Seguramente, referido diploma legal trará diversos
questionamentos de ordem prática e jurisprudencial, já que, com uma só penada,
foram criados novos instrumentos na seara penal/processual penal (ex: “juiz das
garantias”, “acordo de não persecução penal”, etc.), e, também, promovidas
alterações na legislação penal em geral (ex: previsão de novas causas
suspensivas da prescrição, alterações relevantes na Lei dos Crimes Hediondos,
novas disposições sobre a progressão de regimes, etc.).
Para aqueles que militam na seara penal, é certo que 2020
será marcado por muito estudo, debates e desenvolvimento de novas teses e
proposições jurisprudenciais.
Como de praxe, a nova lei mal foi publicada e, da noite para
o dia, muitos já a estudaram e estão opinando a seu respeito, seja elogiando o
texto legal ou criticando-o parcial ou integralmente.
Pois bem, observando todas as alterações, é possível notar
uma importante “novidade” processual, até o momento pouco comentada,
introduzida no §5º, do artigo 157, do C.P.P. De acordo com a
referida “nova” regra, que integra o artigo do C.P.P. que trata das
provas ilícitas, estará impedido para proferir sentença ou acórdão “o juiz
que conhecer do conteúdo de prova declarada inadmissível”.
Referido parágrafo trouxe ao C.P.P. uma nova forma de
impedimento à atuação do Magistrado, assim assegurando não só o juiz natural,
mas também, e principalmente, a imparcialidade do julgador.
Sem aqui pretender esgotar o assunto, cumpre esclarecer que,
como regra geral, uma vez observados os princípios próprios de competência, o
juiz natural da causa será aquele assim determinado pela lei processual penal.
Há, entretanto, situações excepcionais legalmente previstas que, mesmo
cumpridos os pressupostos da competência processual, tornam o Magistrado
suspeito ou impedido para atuar em determinado processo. E, quando tais situações
ocorrerem, isto é, sendo o Juiz suspeito ou impedido para presidir uma
determinada ação penal, ele deve se abster de praticar atos decisórios e
solicitar sua “substituição” nos autos.
Apenas para bem contextualizar a questão, cumpre mencionar
que a suspeição ocorre quando houver dúvida quanto à imparcialidade do Julgador
para continuar à frente de um determinado processo, nos termos do artigo 254,
do C.P.P. Já o impedimento se dá quando existir um obstáculo (ou proibição)
para que o Magistrado continue atuando em um feito qualquer, consoante as
cláusulas expressas no artigo 252, do C.P.P.
Para os fins deste artigo, é preciso manter o foco nas
regras relacionadas ao impedimento do Magistrado. E, no que diz respeito
àquelas, impende aqui destacar a regra inserta no inciso III, do artigo 252,
do C.P.P., segundo a qual “o juiz não poderá exercer jurisdição no
processo em que: (...) III - tiver funcionado como juiz de outra
instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão”.
Em termos mais claros, já não é de hoje que a nossa lei
processual penal veda que um determinado Magistrado seja “juiz dele mesmo” em
segundo grau, isto é, por expressa determinação legal, o juiz está impedido de
atuar em processo no qual já tenha atuado em instância inferior.
Até aí, ou seja, quando se está diante de hipótese atrelada
ao desenrolar vertical do processo, a regra processual retro mencionado é
clara, eis que impede, ad exemplum, que o Juiz de primeiro grau que
proferiu a sentença, quando ainda atuava na primeira instância, venha a
proferir decisão no âmbito recursal, já na segunda instância, após ter sido
promovido na carreira.
Todavia, a referida regra processual não se mostra eficiente
quando, na hipótese de reconhecimento de nulidade processual pela instância
superior, o processo acaba retornando às mãos do mesmo Juiz que proferira a
decisão anulada. Em casos que tais, sobretudo quando a decisão anulada já
adentrou no mérito da causa, a declaração de nulidade de um determinado ato
decisório pode produzir pouco ou nenhum efeito prático ao acusado.
Explico. Imaginemos uma situação na qual um juiz de primeiro
grau condene um determinado réu sem observar um questionamento preliminar
relevante deduzido pela defesa, em sede de alegações finais. Em sede recursal,
a defesa alega a ocorrência de nulidade da sentença condenatória, justamente em
virtude do silêncio da sentença quanto à determinada questão oportunamente
apresentada nos autos. Por ocasião do julgamento do recurso, a Corte de
Apelação dá provimento ao mesmo para anular a sentença e, sem examinar o
mérito, determina a baixa dos autos ao Juízo de primeiro grau para que nova decisão
seja proferida, desta feita examinando o ponto controvertido de forma expressa.
Quando tal situação ocorre, o processo acaba retornando ao
mesmo Juízo de primeiro grau e, não raro, às mãos do mesmo Juiz que decidira
anteriormente. Ora, ainda que se trate de um segundo julgamento da causa, o que
se pode esperar daquele mesmo Juiz que, após ter examinado as provas, já havia
condenado o réu? A não ser que o ponto controvertido altere drasticamente o
quadro processual/probatório, é forçoso admitir que o réu será novamente
condenado, numa operação de “recorte e cole” com alguns pouquíssimos e
irrelevantes adendos.
Nesse tipo de situação, é evidente que o Juiz, ao ser
compelido a julgar pela segunda vez o mesmo processo, deveria declarar-se
impedido para tanto, afinal, como já externara sua opinião legal sobre as
provas anteriormente, submeter o feito a sua análise novamente beira a total
inutilidade, pois seria ilógico que, sem a produção de provas novas, ele viesse
a alterar profundamente o seu entendimento já externado na primeira sentença.
Tal situação, que até poderia ensejar uma causa de impedimento no desenrolar
horizontal do processo (i.e, no âmbito de uma mesma instância), não tem
previsão legal na nossa legislação. Contudo, embora restrito à uma situação
específica e bem determinada, é justamente aí que ganha relevância o “novo”
§5º, do artigo 157, do C.P.P.
De efeito, doravante, ao menos no que diz respeito ao tema
das “provas ilícitas”, o Juiz que, a qualquer tempo, “conhecer do conteúdo
de prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”. Em
outras palavras, quis o legislador impedir que um Magistrado profira decisão no
processo após ter tido contato com uma prova posteriormente declarada ilícita.
Na prática, tome-se como exemplo a situação em que um
Tribunal anule um determinado processo por conta da ilicitude da prova obtida
em sede de medida cautelar de interceptação telefônica. Com o retorno dos autos
à origem, todo e qualquer Juiz que teve contato com aquela prova – ainda que
admitindo-a como válida – estará impedido para proferir (nova) sentença nos
autos.
Por que isso? Ora, é evidente que um determinado Magistrado,
ao não admitir uma determinada prova como ilícita, terá a sua imparcialidade
abalada para julgar aquele processo após a Instância Superior ter reconhecido a
ilicitude e a imprestabilidade daquele elemento probatório.
De efeito, daqui por diante, fica então estabelecido que, em
se tratando de discussão atinente ao tema “provas ilícitas” (e, por isso,
inadmissíveis), uma vez reconhecida a nulidade e determinado um novo julgamento
da causa, após o desentranhamento das provas tidas como ilícitas, tanto o Juiz
quanto o(s) Desembargador(es) que conheceram “do conteúdo da prova
declarada inadmissível” estarão impedidos de proferir (nova) sentença ou
(novo) acórdão nos autos.
Com isso, ainda que o processo, uma vez anulado, retorne às
mãos do mesmo Magistrado (Juiz, Desembargador ou Ministro) que, após ter
conhecido “do conteúdo da prova declarada inadmissível”, tenha decidido
nos autos, estará ele legalmente impedido para proferir uma nova “sentença
ou acórdão”.
A nova regra, embora não resolva a questão do impedimento do
Juiz no desenrolar horizontal do processo, ameniza, ainda que em pequena monta,
os nefastos prejuízos de se permitir que um mesmo Juiz julgue uma mesma causa
duas vezes.
É pouco, mas, sem dúvida, já ajuda.
* Euro Bento Maciel Filho é advogado
criminalista, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro
Filho e Tyles Advogados Associados