Debates
A reforma da Previdência, a Constituição e a ameaça à justiça social
Da Redação | 08 de junho de 2019 - 01:48
Por Erick Magalhães
O Congresso Nacional discute atualmente a Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) 06/2019, elaborada pela equipe econômica do Governo
Federal, que pretende realizar uma ampla reforma na Previdência Social, a qual
impactará não só na sociedade como um todo, mas, especialmente na vida dos mais
necessitados. Fala-se que a mudança, além de necessária para o país não
“quebrar”, ainda será benéfica, pois reduzirá as desigualdades. Não há prova de
nenhum dos argumentos.
Economistas se dividem entre a alegação do tamanho do
déficit da Previdência e a constatação de que seria possível haver um superávit
nas contas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), caso a economia
estivesse em crescimento. Além disso, o Governo decretou sigilo de documentos e
não apresentou cálculo atuarial.
Segundo os dados econômicos divulgados, se aprovada, a
Reforma da Previdência geraria uma suposta economia de 1,2 trilhão de
reais no prazo de 10 anos. No entanto, o montante de 83% desta economia é
atribuído à redução do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o qual possui
valor de um salário mínimo, e às medidas aplicadas ao regime geral de
previdência social, (RGPS), o qual paga atualmente, em média, 1.252,00
aos aposentados por idade e R$ 2.231,00 aos aposentados por tempo de
contribuição. Não se trata de “economia”, mas sim da subtração de direitos, que
não contribuem com a redução de desigualdades.
Contudo, além do debate econômico, é fundamental analisar a
partir de um olhar crítico do ponto de vista jurídico e avaliar as ameaças aos
direitos fundamentais da população brasileira que estão embutidas na
proposta do governo.
Na Constituição de 1988, o constituinte foi sábio ao
encontrar o equilíbrio para pacificar questões relacionadas ao capital e ao
social. O capital é retratado pelo art. 170, no qual é intitulado de “Ordem
Econômica e Financeira” e diz que - “a ordem econômica, fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social”, observando, entre os
seus princípios, a “redução das desigualdades regionais e sociais”.
Já a questão social, por sua vez, está presente no art. 193,
que determina que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como
objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
Mas, afinal, o que significa a presença desses dois trechos
na Constituição Federal?
A redação dos dois artigos faz com que tanto a
ordem econômica, quanto a ordem social, convirjam com a busca da justiça social
e com a redução das desigualdades sociais, além de remeter aos fundamentos e
objetivos inseridos nos artigos 1º ao 3 da Constituição Federal, bem
como aos direitos e garantias individuais estatuídos nos artigos 5º e
6º da Carta Magna.
A proposta de Reforma da Previdência, por sua vez, infringe
o direito ao trabalho e à Previdência Social, direitos sociais considerados
garantias individuais fundamentais contidos no art. 6º da Constituição.
Isto porque o projeto de emenda à Carta Magna abre margem
para a instituição de um sistema previdenciário de capitalização. Nele, não há
a contribuição da cota parte do governo ou da cota parte do empregador. Apenas
os trabalhadores são responsáveis por formarem contas individuais que serão,
num futuro, destinadas à aposentadoria. O projeto ignora experiências em países
vizinhos, como a do Chile, que demostraram que o modelo pode resultar em
aposentadorias abaixo do salário mínimo, em mero lucro para instituições
financeiras, responsáveis por gerir as contas, e até no aumento do índice de
suicídio entre a população idosa. É impossível afirmar que este sistema
respeita os artigos 6º e 170 da Constituição.
Outro ponto problemático na proposta do governo é a idade
para se aposentar. A PEC traz uma idade mínima de 62 e 65 anos de trabalho para
mulheres e homens, respectivamente. Ocorre que apenas 0,3% das pessoas com 65
anos ou mais ocupam vagas no mercado de trabalho. Logo, não havendo vagas de
trabalho para a população com a idade de aposentadoria pretendida pelo governo,
ou se insuficientes, certamente uma grande parcela da população não conseguirá
cumprir com os requisitos exigidos na proposta de reforma.
Veja que o art. 6º da Carta Magna classifica o direito ao
trabalho como um direito social e fundamental dos brasileiros. A partir disto,
como pode exigir o governo tal idade mínima, se o brasileiro com 65 anos não
consegue emprego e se não há emprego para toda a população nessa faixa etária?
Tanto o regime de capitalização quanto os requisitos de
aposentadoria serão inalcançáveis para grande parte da população e,
prevendo a possibilidade que a parcela mais pobre da população não consiga
se aposentar, o governo propõe um Benefício de Prestação Continuada (BPC) no
valor de R$ 400 para população idosa e miserável que atinge os 60 anos. Não
será desse modo que a ordem econômica irá garantir a existência digna de toda a
população.
Por último, ainda é importante lembrar que a Constituição
Federal, em seu art. 5º, traz o chamado princípio da igualdade. A PEC, por sua
vez, iguala a idade mínima de mulheres e homens no caso dos professores e
trabalhadores rurais. Mulheres, em outros casos, possuem idade mínima
diferenciada por conta da dupla jornada e da dificuldade de permaneceram ativas
no mercado de trabalho. A diferenciação deveria permanecer em todos os casos,
sob pena de violação desse princípio.
Os parlamentares brasileiros devem se ater a tais questões e não podem tomar medidas que prejudiquem a classe mais necessitada, mas, por ora, podemos dizer que falharam ao permitir que mudanças inconstitucionais seguissem em tramitação no Congresso, ao aprovarem a PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e seguirão falhando caso a proposta seja aprovada. É importante cumprir os princípios constitucionais e assegurar os direitos e garantias individuais pensando na dignidade do trabalhador e do aposentado, para o bem do País, já que os exemplos dos países que instituíram reformas semelhantes comprovam o retrocesso social e a ampliação das desigualdades.
Erick Magalhães é especialista em Direito Previdenciário e
Trabalhista e sócio do escritório Magalhães & Moreno Advogados